Pelo padre Nuno Pacheco de Sousa
Presta sentido: «O silêncio só raramente é vazio/ diz alguma coisa/ diz o que não é».
Este haiku de José Tolentino Mendonça é talvez a melhor definição do silêncio que já encontrei. A melhor definição deste silêncio que vai muito além da boca fechada ou do eco das igrejas vazias, absorventes de boa parte dos sons exteriores.
Num pulo entre março de 2020 e este que começamos na semana que agora passa, fica uma sensação de suspense, de interregno surdo, fica-nos uma experiência de reconhecimento a partir do silêncio. Há silêncio que diz o toque adiado, os abraços e os beijos que não se entrelaçaram. Há o silêncio que denuncia a ausência do riso e do sorriso, da comensalidade e do convívio entre histórias e dias presentes. Há um silêncio escutado com o ouvido do coração, que se mistura com a saudade e estranheza. Mas há sobretudo um silêncio que na mais pura verdade grita, que se indigna, que para muitos tem uma forma revoltante e angustiante perante o outro, o grande Outro. Um silêncio perante a dor, a morte, a injustiça, ou puramente perante um sonho desfeito, uma situação incontrolável, um tempo pandémico como hoje.
O silêncio é a forma como lidamos com a nossa própria vida, com quem somos, com o que pensamos, ou nos é transmitido através dos sentidos e do nosso corpo. Pode ser a janela pela qual olhamos o que nos rodeia, mas uma janela aberta, capaz de deixar ver também o que a habita pelo lado de dentro.
No silêncio reside uma magia que vai muito para além do parar, do não estar ou da ausência. O silêncio é um confronto totalmente desnudo, a chave mais autêntica que nos poderá descortinar a novidade que este tempo nos traz, a realidade para além da pausa, o desconforto após um tempo desamparado, a coragem depois do medo.
Quem é romeiro sabe bem que a grande caminhada ao alvorecer de cada dia é o lugar do mais íntimo silêncio misturado entre a resistência, as condições atmosféricas, as orações mais pessoais, o lugar do caminhar confiado e guiado, embrulhado pela audição do tilintar de terços, do vento nas folhas, das águas, dos pássaros a anunciar o dia, dos cheiros intensamente novos. O tempo do andar embalados pelo palmilhar de cada pegada que arrepia o caminho numa quaresma a adiantar.
É esta experiência de romagem no deserto da ilha que nos permite, acompanhados, absorver este silêncio que cada vez mais o Ser-Humano sente e não sabe orientar ou expressar. Por entre dias e semanas meticulosamente agendadas, sem lugar a muitos deslizes, vivemos uma vida à distância de um feroz click, obrigados ao automatismo, à resposta rápida, à interferência digital numa vida que se quer livre, silenciosa, habitada por gestos que nos diferenciem e nos afastem do comum desassossego a que somos obrigados diariamente. A Quaresma já valeria a pena se, ao menos, a cada ano nos recordasse que somos pessoas, que não somos máquinas.
Para e pensa.
Escuta, vês que o silêncio não é ausência e que raramente está vazio?
*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do jornal A Crença.