Pelo Padre José Júlio Rocha
“A Tarde do Cristianismo” é o último livro daquele que considero o mais conceituado pensador da Igreja na atualidade: o sacerdote checo Tomás Halik. O teólogo da “Igreja do Silêncio” tem a acuidade e delicadeza de um bisturi em microcirurgia, atinge o fundo das questões com a precisão delicada de um chinês que, com pauzinhos, apanha uma mosca no ar. Lê-lo é perceber a forma fácil como se podem enfrentar questões difíceis. A sua linguagem é simples, direta, docemente sagaz, mostrando a verdade das coisas e das ideias de uma forma que todos nós compreendemos.
Esta última obra do nosso autor vem num dos momentos mais tormentosos da história recente da Igreja, não apenas pela hecatombe do abuso silencioso e reiterado de menores que constatámos e continuamos a constatar, mas por mais mil e uma ou duas razões.
Estamos no tempo das igrejas vazias. E não só as igrejas. Mosteiros, conventos, seminários vão parecendo edifícios fantasma, com as silhuetas orgulhosas e imponentes de algum tempo, mas os corredores escuros e ecoantes, os quartos vazios, alguns vendidos, transformados noutras estruturas, já não há vocações.
Os movimentos laicais, clássicos lugares de poderosas manifestações de fé e de oração, de estudo e compromisso social, vão travando o seu entusiasmo e a sua ação, os leigos vão, simplesmente, desistindo, como se já tivessem cumprido a sua tarefa, como se tudo aquilo tivesse sido apenas um belo tempo de entusiasmo quase juvenil, como se tudo, tudo na Igreja tivesse tido o seu tempo e, agora, já faltam forças, coragem, fé, compromisso.
As nossas crianças já não sabem quem é Jesus, já não ouviram falar Dele. O contágio de emoções com a figura de Jesus, fundamento de toda a educação cristã em família, está-se esvaziando nos nossos lares que não rezam.
As sombras do passado influenciam, desde há muito, a credibilidade da mensagem da Igreja. Quem é que nos ouve, quem nos dá atenção? Se tentarmos entrar no areópago da cultura, corremos o risco de se rirem de nós, como o fizeram com São Paulo. Perdemos, há demasiados anos, o rasto dos pobres das periferias do mundo ocidental. Oso ricos, esses, nunca precisaram da mensagem da Igreja: têm a sua religião. Somos uma Igreja que chega a alguns lares da classe média, razoavelmente instalados e com alguma boa vontade para nos escutarem.
Se no passado as divisões aconteciam entre religiões, entre igrejas separadas, hoje a divisão acontece mesmo dentro da Igreja, no interior dos seus mais altos responsáveis. E percebemos, mais uma vez, aquele velho ditado que diz que “em casa onde não há pão…”
Andámos na faina. Muitos deram a vida pela Igreja de Jesus Cristo. Não fizeram outra coisa senão dar a vida por tudo isto. E sente-se aquele cansaço, por vezes impercetível, por vezes crasso, todas as vezes doloroso, de quem dá tudo o que pode e tem e, ao fim do dia, dos dias, dos anos, das décadas, vai vendo a aparente e humana derrota de quem dá sem ver o resultado, jogo de cabra-cega, quantas vezes às apalpadelas… e as paredes sãos as únicas que ouvem.
Tomás Halik dá-nos, no entanto, uma história, popular na Republica Checa, que é a do arquiteto que, depois de ter terminado uma bela catedral gótica, mandou queimar os andaimes. O fogo foi de tal ordem que o arquiteto pensou que a catedral estava a incendiar-se e suicidou-se. Não percebeu a tempo que caíram estrondosamente apenas os andaimes, deixando a catedral apenas com algumas chamuscadelas, mas bela, limpa da estrutura já caduca dos andaimes. Não será que aquilo que tanto nos angustia é apenas o desmoronar daquilo que não precisava ficar de pé? Não será apenas a ideia “demasiado humana” de uma Igreja fruto do nosso trabalho, das nossas convicções, das nossas mãos, que está em crise? Não será que a Igreja de Jesus Cristo e do Espírito Santo continua, como fruto da Graça, o seu caminho? Não será toda essa paisagem brumosa e escura uma espécie de purificação, um novo paradigma ainda por descobrir?
Estamos, é certo, no entardecer do cristianismo tal como o conhecíamos antes. A História da Igreja está repleta desses entardeceres.
Tomás Halik encontra na “Pesca Milagrosa” uma metáfora para a Igreja dos nossos dias, ferida e cansada, desmotivada e perturbada com a velocidade deste tempo louco. Os apóstolos estão na margem, barcos vazios, sujas as redes. Mãos e cestas vazias, olhares de desânimo, rostos cansados. O desamparo e o desgosto de quem trabalhou na dura faina toda a noite, essa noite longa da fé, essa noite da Igreja, essa noite do sacerdote, do pastor, do religioso, do catequista, do cristão. O que é essa deserção de mais de 60 mil cristãos açorianos das igrejas para fora nos últimos 30 anos senão uma longa noite da fé, onde se trabalhou duramente e as redes regressaram vazias?
Jesus manda tentar de novo, desta vez para o outro lado do barco, mudar de rumo ou estratégia, mas sobretudo mudar de atitude interior. Já há dois mil anos devíamos ter compreendido que nunca estamos a trabalhar sozinhos.
A ideia que grande parte do mundo tem de nós é de que somos uma superestrutura arquetípica, que já fez o seu papel, cansada e incapaz de acompanhar a força brutal de um mundo em alta velocidade, que se fecha cada vez mais em si própria, na sua autorreferencialidade, como um dinossauro em agonia. A catástrofe do abuso de menores é apena mais uma confirmação de um ocaso anunciado.
E Jesus manda-nos começar tudo de novo, depois da noite, depois das redes vazias. É aqui que as nossas forças parecem acabar. Mas é aí que a fé começa.
*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do jornal Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.