Por Carmo Rodeia
No primeiro dia da nova legislatura o Bloco de Esquerda (BE) apresentou um projeto de lei que “define e regula as condições em que a antecipação da morte, por decisão da própria pessoa com lesão definitiva ou doença incurável e fatal e que se encontra em sofrimento duradouro e insuportável, não é punível”. Traduzindo por miúdos, o BE volta à carga sobre o tema da Eutanásia. O PS, que não inscreveu o assunto no seu programa eleitoral, garante que vai apresentar um diploma sobre o assunto e esclarece que será um projeto idêntico ao apresentado na anterior legislatura mas com alguns melhoramentos que refletirão, segundo a palavra socialista, a discussão que tem vindo a ser feita. (Onde?) Para esta semana o PAN também pretende apresentar o seu projecto e os Verdes não vão ficar de braços cruzados, embora filosoficamente falando, como noticiava o Expresso esta semana, os comunistas, seus parceiros de coligação, sejam contra.
Esta semana, também, os bispos portugueses vão estar reunidos em Fátima na sua Assembleia Plenária. O assunto não está na agenda formalmente mas não há volta a dar sobre um pronunciamento sobre este assunto. E, repetirão aquilo que sempre têm dito: uma oposição frontal, de base, à legalização da Eutanásia. Portanto, numa altura em que o Parlamento, de maioria de esquerda, volta ao tema a Igreja prepara-se também para regressar ao combate.
Não há volta a dar e nem sequer há grandes novidades: as posições são conhecidas e não é expectável que, na sua essência, se aproximem. Melhor teria sido que ninguém tivesse desistido do tema e o tivesse discutido, às claras, com argumentos válidos, inteligentes e coerentes, que fossem esclarecedores, e já agora, com a defesa da vida e a defesa da qualidade do acompanhamento das pessoas que podem desejar essa via- da morte- por falta de opção não de saúde mas de qualidade de vida.
Sejamos claros: a eutanásia e o suicídio assistido são, em si mesmos, intrinsecamente uma derrota para todos.
No passado dia 2 de junho, o Papa na sua conta do Twitter escreveu, a propósito do caso da jovem holandesa de 17 anos que escolheu morrer, que a resposta a que somos chamados “é nunca abandonar aqueles que sofrem, não desistir, mas cuidar e amar para restaurar a esperança”. Dito de outro modo: ou bem que consideramos inviolável o direito e o respeito à vida desde a sua conceção até à morte natural, que está plasmado na lei, nomeadamente na constituição portuguesa, que prevê a inviolabilidade da vida humana, ou abrimos uma caixa de pandora que terá um desfecho imprevisível.
Lembro-me, quando fui porta-voz da Plataforma pela Vida nos Açores, no referendo sobre a despenalização da interrupção voluntária da gravidez até às 10 semanas e a possibilidade dele ser feito no Serviço Nacional de Saúde, ter alertado em vários debates para muitos aspetos entre eles o perigo deste passo ser o primeiro para a legalização do aborto como método contraceptivo. Os dados de 2017 dizem que o aborto felizmente baixou 3% em Portugal em relação a 2016, e que foi o mais baixo de todos desde a legalização. Mas também dizem que dos 15.492 abortos, mais de 50% das interrupções feitas no SNS foram feitas por mulheres entre os 20 e os 29 anos, que já eram mães e até em mulheres mais velhas que já tinham dois filhos.
Os que estavam a favor do sim e comigo debateram argumentavam que não, não era isso da contraceção: tratava-se apenas e tão somente de defender a saúde, a dignidade, a vontade e a liberdade da mulher de decidir se queria ou não prosseguir a gravidez, colocando a mulher no centro da decisão porque ela é dona do seu corpo e da sua vontade. E que a despenalização não obrigava ninguém a abortar. É óbvio que ninguém, no seu perfeito juízo, defende que uma mulher deva abortar num vão de escada. Que a sua saúde e a sua dignidade sejam postas em causa. Ou que o aborto seja a primeira opção de uma mulher. Mas a verdade é que ajudámos a que fosse porque, entretanto, fez-se pouco noutros capítulos, onde se poderia evitar que uma vida humana pudesse terminar por vontade expressa e única de outro ser humano, a mãe. E os números que referi há pouco comprovam-no. Na altura, também prometiam mundos e fundos no aconselhamento, nas consultas e por aí fora. Tal como hoje, quando se discute a eutanásia.
Ou seja: primeiro discutimos se um ser humano- a mulher e mãe- pode decidir o destino de outro ser humano que é o filho que gera dentro de si; hoje discutimos se somos assim tão donos da vida e podemos acabar com a nossa própria vida…com a ajuda de outros. É isso que estamos a discutir, com mais médicos ou mais conselheiros nas várias comissões que entretanto se hão de criar para nos ajudar quando é que devemos por fim à vida. Ou no limite da nossa sozinhês quando é que somos “empurrados” para pôr fim à vida. De forma legal e oficial!
Tenho um familiar muito próximo com Alzheimer, embora numa fase inicial, o que significa que os momentos de lucidez ainda são grandes. Desde que tomou consciência da doença só pede para Deus o levar. Porque está a sofrer e sente que faz os outros sofrerem. A doença é incurável. Daqui para a frente temos de nos preparar para o pior. O familiar e nós. Neste caso nem estaremos a falar de uma situação de dor física insuportável ou de outras que fazem parte do argumentário: estamos a falar de consciência; de alguém que sabe que tem a sua vida de pantanas, que daqui a dias estará noutra dimensão e que o esquecimento, a falta de sentido, usurparão a sua vida. Umas vezes com mais sofrimento físico, também por outras patologias associadas, mas sempre com a certeza, que tem agora, de que será um peso e provocará sofrimento nos outros. Dirão novamente alguns: não é disso que estamos a falar; é de outro tipo de doenças; é de quem quiser poder decidir de livre vontade se continua ou não a sofrer perante a dor insuportável… pois! A questão que coloco é: mas não terá este meu familiar direito a expressar a sua vontade e a concretiza-la, pedindo aos homens que façam aquilo que pede a Deus, sem sucesso, graças a Ele e para nossa felicidade?
A sério que eu gostava muito que houvesse um debate esclarecido sobre este tema. Que especialistas nos informassem, sem dogmas científicos ou outros, e numa linguagem que todos consigamos descodificar, o que está em causa. Utilizando-se argumentos inteligentes, sem radicalismos.
A verdade pode não ser um absoluto mas um caminho. Mas o que para mim é uma certeza é que a dor, o sofrimento, o sentido da vida e da morte são realidades que temos de discutir com um olhar de esperança. E também sei, ou pelo menos acho que sei, que cultura da morte e do descarte- porque é sempre disso que estamos a falar (e não, não é qualquer tipo de fundamentalismo!)- não são um sinal de civilização mas um sinal de abandono que muitas vezes é disfarçado de uma falsa compaixão.
Se calhar, para quem tem fé, a esperança confiável ajuda também a enfrentar a dor e a morte, questões que hoje temos dificuldade em dirimir. A morte e o sofrimento fazem parte da vida. Explicar isso, de forma clara, é um dos serviços que a Igreja é chamada a prestar à humanidade do nosso tempo, porque o amor, aquele que se faz próximo, de modo concreto e que encontra em Jesus ressuscitado a plenitude do sentido da vida, abre novas perspetivas e novos horizontes também a quem pensa não aguentar mais.
A sério: provoquemos este debate no espaço público por iniciativa própria e não por reacção aos políticos. Talvez consigamos evitar coisas piores.