Pelo Padre José Júlio Rocha
«Também os srs. José Elias e José Nogueira, antigo professor, nos confirmaram a informação do sr. Mário Carreira Alves sobre o ter realizado em Leiria, no dia 8 de Agosto de 1900, com 38 anos de idade, o exame de instrução primária o Ermitão da Nazaré. Acrescentando o primeiro que, apresentando-se o Ermitão descalço, fora aberta uma subscrição para lhe serem comprados uns sapatos.» (Mensageiro de Leiria, 10 de Março de 1945, página 2).
Este breve trecho do jornal diocesano de Leiria refere-se a um certo Francisco Machado da Costa, também conhecido como Francisco Homem da Costa, que terá morrido com fama de santidade, sacristão da Sé de Leiria, onde ensinava o catecismo, até à sua morte, aos 81 anos, em 1945.
Garante meu irmão Hernâni, que tem vindo a escarafunchar no “Mensageiro de Leiria” e noutros documentos, as peripécias incríveis desta personagem, que a vida dela dava um filme. Não estou longe de acreditar, pelo não muito que sei, que Hollywood não desprezaria um guião desta natureza.
A igreja da Fonte do Bastardo ostenta, por fora, uma beleza simples e imponente nos seus traços. À sua frente sobe um caminho, encosta da Serra do Cume acima, que serpenteia à volta de uma ribeira, em direção a uma fonte que deu nome à freguesia, e onde se situavam as primeiras casas do povoado. Foi aí que, a 16 de Março de 1864, nasceu Francisco Machado da Costa, filho de Manuel Machado Cardoso e Maria Cândida, nascidos e criados na mesma rua, conhecida popularmente como Ribeira dos Lagos.
Aos 21 anos embarcou para a Califórnia, onde deambulou por aqueles campos lisos do Vale de São Joaquim, regressando, quatro anos depois, pobre e adoentado. Na Fonte do Bastardo, trabalha no campo, mas desabafa nas suas memórias: “Vivia também do trabalho do campo, e que quase sempre se dava na companhia de outras pessoas que geralmente ocupavam uma grande parte do seu tempo em conversações escandalosas que toavam mui mal aos ouvidos daqueles que desejam ter uma vida recatada e honesta.” Presumo que a Fonte do Bastardo, nessa época, era fresca…
Aos 29 anos parte para Lisboa e nunca mais regressa aos Açores.
Aqui há um período ainda para mim meio obscuro, que preciso de estudar melhor. Trata-se, provavelmente, de uma primeira peregrinação do nosso herói até Lourdes. Maltrapilho e com ares de mendigo, dormindo e comendo com mendigos, a gendarmerie francesa tê-lo-á confundido com um anarquista e prendeu-o e deportou-o para Lisboa. Francisco não descansa: parte em romaria para Santiago de Compostela, mas é preso à passagem por Torres Vedras, por suspeita – igmaginem! – de ter sido o assassino do presidente francês, François Carnot, morto a 24 de Junho de 1894. Esteve encarcerado cerca de três meses, até que descobriram o verdadeiro assassino.
Francisco Machado da Costa fixa-se então na Nazaré, primeiro no Monte de São Bartolomeu e depois numa capelinha na praia da Nazaré, onde vive como um eremita, o que lhe granjeou fama de santidade.
No princípio de 1902 acontece a grande aventura da sua vida, cujas memórias serão postumamente publicadas pelo “Mensageiro de Leiria” e, mais tarde, coligidas num volume de 191 páginas, uma preciosidade que a sua terra natal praticamente desconhecia. Parte pobre como um romeiro, naquele inverno europeu, sem capote nem manta, com um xaile apenas, roupa numa saca, pão e água, alpercatas nos pés nus, atravessando a Espanha, o sul de França, atingindo Roma três meses depois, sempre a pé.
Eremita e romeiro, Francisco Machado da Costa regressa a Portugal onde, mais tarde, se torna sacristão da sé de Leiria. Com as suas barbas patriarcais, com a sua pose de santidade, ganhou fama de santo na cidade do Lis, onde também ensinava o catecismo às crianças, ele que fizera o exame da primária aos 38 anos.
Nas suas memórias não faz referência à família, mas sabia-se, no tempo, que, daquilo que lhe davam, enviava sempre alguma coisa para a família da Fonte do Bastardo, provavelmente não muito desafogada.
Refere Gervásio Lima que Francisco Machado da Costa terá dado uma “entrevista interessantíssima” ao consagrado jornal “O Século”, mas não refere quando, pelo que me darei ao trabalho de pesquisar tal preciosidade.
À morte do nosso herói, a sua fama já era grande. Os jornais dão a notícia, sobretudo o “Mensageiro de Leiria”, que refere imensas notícias e artigos de opinião, sem contar com a já referida publicação póstuma, em capítulos, das memórias do peregrino da Nazaré.
Francisco Ermitão é, para a Fonte do Bastardo, mais ou menos o que Santo António é para Lisboa: aí nasceram, mas a essência das suas vidas aconteceu noutros lugares. E assim permaneceu por cá, quase esquecido, o nome do filho da minha terra. Os nossos antigos contavam-nos histórias dele, crivadas de fantasia popular, onde o imaginávamos de bordão às costas, santo e pobre, para sempre longe.
Espero o dia em que a terra que o viu nascer o possa conhecer melhor, eventualmente ler o seu livro de aventuras, peripécias e devoções, prestar-lhe a merecida homenagem.
*Este artigo foi publicado esta sexta-feira no Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.