Por Carmo Rodeia
O título deste Entrelinhas, uma vez mais, não é meu. Trata-se de uma afirmação de Etty Hillesum, que recupero para dar o mote a esta reflexão sobre a visita que o Papa Francisco inicia amanhã ao Iraque. É uma viagem muito corajosa, além de inédita. Francisco será o primeiro Papa a deslocar-se a esta região do Globo, onde a Igreja primitiva começou. Se há algum gesto que possamos fazer para ajudar os cristãos perseguidos, este é sem dúvida o alento mais aconchegante que esta comunidade perseguida, e chacinada nalguns momentos em que se calhar era mais fácil e menos doloroso cometer apostasia, renunciando à sua fé, pode receber.
Devo fazer uma declaração de príncipio: sou uma apaixonada pelo Médio Oriente. Meço o peso da palavra paixão, que ao contrário do que dizia Oscar Wilde, vai muito para além do capricho. Desde miúda, que a minha viagem de sonho é para estas paragens. O que conheço e alimenta esta paixão são as leituras, os filmes, e a partir deles vou construindo as minhas viagens, percorrendo lugares, imaginando diálogos e uma viagem imaginária que tem sempre por diante inúmeros desafios. Nenhum deles, certamente, igual ao da resistência de tantos que ali persisitem contra tudo e contra todos, sofrendo na carne as consequências da sua fé. Sim, porque no Iraque, como em qualquer país do Médio Oriente ser cristão é viver na margem, na exclusão, sem templos, sem obras de arte que nos remetam para o evangelho, sem celebrações vistosas, sem rendas ou colarinhos, porque tudo é proibido. Onde os rostos são os únicos ícones que se veneram e o coração de cada um o único templo de fé. Lá, nós somos e seremos sempre os infiéis contra os quais os grupos mais radicais, que têm efetivamente poder, lutam. Lá, nós somos os excluídos, os que não têm direito a ser o que escolheram ser, quando se sentiram tocados por Deus. E muito menos autorizados a exibir qualquer sinal da sua fé. Ainda assim, gostava de viajar pelo Médio Oriente. Não me perguntem porquê; eu própria tento encontrar uma explicação; faz parte da tal paixão eterna, que vai muito para além do capricho.
Talvez porque embalada pelo sonho das mil e uma noites, penso sempre que o bem triunfará. E no fim, a princesa cristã vencerá porque consegue explicar que o seu Deus é igual ao Deus do Corão, porque é um Deus de Amor.
Voltemos, então, à viagem do Papa Francisco.
Com quase 2000 anos de história, os cristãos iraquianos têm sido muitas vezes negligenciados pelas igrejas do ocidente. Mesmo aqueles que vêm para a Europa em busca de asilo político. A Igreja católica ocidental dá pouca atenção à oriental e se calhar poderíamos renovar muito o nosso cristianismo se agíssemos de outra maneira. Aliás João Paulo II, depois de Leão XIII e de Pio XII, reconheceu isso mesmo na Carta Apostólica Orientale Lumen, ao firmar que todos devemos conhecer melhor esta zona do globo, de onde a “Boa Nova foi irradiada pelo mundo, com desassombro”. E prosseguia: “Aos irmãos das Igrejas do Oriente vai o meu pensamento, com o desejo de procurarmos juntos a força de uma resposta às interrogações que o homem, hoje, lança em todas as latitudes do mundo. Ao seu património de fé e de vida quero dirigir-me, consciente de que o caminho da unidade não pode conhecer hesitações, mas é irreversível como o apelo do Senhor à unidade.(…) Não se desvirtue a Cruz de Cristo, porque, se se desvirtua a Cruz de Cristo, o homem perde as raízes, já não tem perspetivas: destrói-se!”
É interessante verificar, por exemplo, o facto das igrejas Caldeia e Síria Ortodoxa, com raízes no ínicio do Cristianismo, continuarem a celebrar a sua liturgia em aramaico, preservando um enorme tesouro em termos de filosofia, teologia e espiritualidade.
Nenhuma delas conhece guerras como as que aconteceram no Ocidente, onde os cristãos lutaram violentamente contra os outros. A solidariedade entre as várias Igrejas, do Líbano à Sítia é muito grande. Em Nínive, uma das regiões que o Papa visitará, que foi devastada pelo Daesh, e que agora é ocupada por milicias pro-iranianas (muçulmanos xiitas), as comunidades no seu dia a dia continuavam a expressar-se em aramaico, procurando preservar a genuinidade das suas tradições cristãs.
A primeira Igreja floresceu nesta zona, nos territórios da Síria, da Jordânia e da Turquia. Só com o crescimento do Islão é que os cristãos se tornaram cidadãos de segunda classe, não porque o Corão o imponha mas porque a sua interpretação dá aso a duas atitudes, uma mais dialogante do que a outra e assim se concretiza depois, na prática, o tratamento que os cristãos recebem.
Desde há séculos, nesta zona, havia um costume: os cristãos cumprimentavam os muçulmanos na festa do Saccrificio (Eid Al-Adah) e os muçulmanos cumprimentavam os cristãos no Natal. Em 2019, este gesto foi proibido por uma fatwa (um édito religioso). Em 2020 a questão foi revista, mas, na realidade, nem sunitas nem Xiitas tratam bem os cristãos. Pelo menos de forma declarada, como se no desprezo estivesse a garantia de proeminência.
Por isso, a visita do Papa, e em especial o encontro que está previsto com o principal líder religioso xiita, o aiatolah Ali al-Sistani, em Najaf, um gesto considerado histórico e cheio de significado político, pois pode ser um passo importante para o diálogo inter-religioso e consequentemente para a Paz.
Hoje para falarmos de paz temos de ter presente o contributo das diferentes religiões. Se não nos respeitarmos e não dialogarmos, como refere o Papa Francisco na Encíclica Fratelli Tutti, dificilmente alcançaremos a paz, porque haverá sempre um deus qualquer que justifique uma guerra.
Acompanho, citando de novo o Papa argentino: “A partir da fé religiosa, é possível tornarmo-nos artesãos da paz e não espectadores inertes do mal da guerra e do ódio”.
Deve ser isto que alimenta o meu sonho das mil e uma noites passadas em qualquer cidade do Médio Oriente.