Pelo padre José Júlio Rocha
Nos guichés do estabelecimento estão três funcionários que, com sacrifício e paciência, atendem os clientes, mais de cinquenta na sala, que vão mostrando sinais de cansaço, impaciência, pressa, urgência. Ninguém refila, mas sente-se tensão na sala. E é uma tensão de todos os dias. Todos os dias isto, todos os dias o mesmo. Quem quer ir aos Correios deve preparar-se para perder tempo. E muito.
A questão é que, há uns bons pares de anos, os Açores tiveram a boa notícia de as viagens até ao Continente terem um teto máximo de 134 euros, mais cêntimo menos cêntimo. A outra face da moeda é que as passagens custam mais do que isso, nós somos obrigados a pagar a totalidade da passagem para depois, num complexo sistema, irmos levantar, nos Correios, o que pagámos acima dos 134 euros. É um incómodo que até valeria a pena, não fossem as exorbitâncias que as companhias que aterram nos Açores exigem para cada viagem de ida e volta. Seiscentos, setecentos, oitocentos euros, às vezes mais, já paguei menos para ir à Califórnia… não acham que aqui há gato? Sem a concorrência, que leva a baixar os preços, as companhias não acham teto. É o Governo – ou seja, todos nós – quem cobre a ganância das aviadoras que, connosco, vão mitigando os poços sem fundo das suas dívidas.
E aqui estou eu, no meio do povo que pacientemente espera a sua vez, alguns não conheço, outros saúdam-me com uma vénia, com um “senhor padre”, outros são mais conhecidos, alguns mais amigos, um sorriso, uma conversa de circunstância. Um, antigo cristão empenhado, fala-me da entrevista de ontem com Dom José Ornelas e de tudo o que andou à volta dela, a saber, a questão dos abusos a menores dentro da Igreja, essa hecatombe que também aconteceu, sem surpresas, em Portugal. “Aonde é que chegámos”, desabafa, com uma indizível tristeza, o meu amigo. “Aonde é que chegámos” vou pensando eu ao lado do meu amigo.
Numa só semana vimos duas entrevistas com o responsável máximo da Conferência Episcopal Portuguesa, Dom José Ornelas. A primeira foi feita por um daqueles tubarões do jornalismo que quase pisam o risco do código deontológico dos jornalistas e cujo principal objetivo não parece ser apurar a verdade mas encravar o entrevistado, tal é o bombardeamento de perguntas: Sandra Felgueiras. Dom José não respondeu plenamente a nenhuma pergunta, seja por ela não o deixar fazê-lo seja por o próprio Dom José não estar preparado para o embate. A principal figura da Igreja portuguesa na atualidade deve ter alguém que lhe seja assessor para a comunicação social, alguém que a prepare, que a ajude, como acontece a todas as figuras públicas. Se alguém o fez, fê-lo muito mal. Ficámos com a sensação de que Dom José Ornelas estaria em maus lençóis por alegado encobrimento de casos de abuso de menores em Moçambique.
A entrevista de ontem foi diferente. Na “Grande Entrevista”, Vítor Gonçalves quis ouvir Dom José, e, apesar de ter sido um jornalista incómodo, com muitas perguntas incisivas, deixou o bispo esclarecer muito melhor as circunstâncias do que se passou em 2011 e ficámos a saber que, afinal, ele fez o que estava ao seu alcance para o apuramento da verdade. Dom José Ornelas é talvez o bispo que, em Portugal, mais lutou para que tivéssemos uma Comissão Independente para o abuso de menores nos moldes em que ela está, de modo a que tudo seja apurado e, sangre o que sangrar, levar até ao fim essa purga. Se não fizermos tudo o que podemos, assentar-se-á nas mentes dos portugueses, como na de muitos outros povos, a ideia de que a pedofilia e o abuso de menores é uma questão sistémica, estrutural da própria Igreja, e não há nada pior do que isso, porque o que se subentende é que essa praga só acabará quando acabar a Igreja. É necessário, em abono da verdade, afirmar que a pedofilia e o abuso de menores é uma tragédia transversal a toda a sociedade, do desporto à escola, dos orfanatos às famílias. Se o nosso objetivo é proteger as crianças, a sua dignidade, saúde, futuro, o trabalho será mil vezes hercúleo, tal é o número de crianças destruídas em quase todas as instâncias onde elas vivem. A Igreja tem uma responsabilidade muito acrescida: instância ética por excelência, que aponta caminhos a seguir, ela é a portadora da mensagem de amor, de paz, de justiça e de proteção aos mais desfavorecidos por excelência. De muitos lados, nunca da Igreja, se poderia esperar um número tão espantoso de crimes contra a dignidade humana.
Aonde é que chegámos… recordo as palavras do meu amigo nos Correios, ele que era um membro ativo do Movimento dos Cursilhos de Cristandade. Que, como tantos outros de anos atrás, em inúmeros movimentos, davam o seu tempo, a sua paciência, a sua fé, a sua oração e as suas boas ações ao serviço da Igreja. Está cansado, como a multidão imensa de cristãos que, ao longo dos anos, foram desistindo, muitos certamente por comodismo, mas outros porque não podiam continuar a ver coisas que viram e queriam ver coisas que não viram. Estamos, é verdade, no tempo das igrejas vazias. Mas não só as igrejas. Os nossos movimentos estão-se esvaziando silenciosamente, os nossos leigos estão-se remetendo à passividade, muitos são os padres para quem os leigos devem apenas ouvir, obedecer, calar e cantar nas missas. Viu-se isto e muito mais em algumas reações tristemente infelizes de algumas figuras eclesiásticas à redação final dos trabalhos da Caminhada Sinodal.
A culpa também é minha. Mas não nego a esperança. Se não acreditasse na doce força do Espírito Santo, na condição divina da Igreja e na bondade de muitos homens e mulheres, não estaria aqui. E isto dará pano para mangas.
*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira no Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.