Pelo padre Hélder Miranda Alexandre
O Natal do Senhor significa a maior surpresa da história. Na Antiga Aliança, jamais se conceberia que Deus pudesse encarnar. O messianismo estava muito aquém desta novidade. Deus foi e é imensamente original. O amor é criativo por natureza. Quem ama inventa, cria espaços e tempos insuspeitos. A surpresa que mais nos toca é aquela que vem da pessoa amada. Tanto é assim que a surpresa negativa tem o mesmo efeito.
O parto do Salvador enche-nos a alma de uma extrema simplicidade, que nos remete para a maravilha da nossa infância, para o calor do carinho da mãe e o abraço forte do pai. Contudo, este nascimento na carne acontece em extrema nudez e frieza humana, sem lugar na hospedaria. Desde o início um amor imenso perante a indiferença dos seus. Veio ao que era seu e os seus não o receberam. O sofrimento está ali!
No passado dia 13 de Novembro, um enfermeiro de 28 anos perdeu a vida ao doar-se totalmente no tratamento de casos de covid/19. “Isto não é um adeus. Amigos e família, amo-vos”, pode ouvir-se na mensagem que Sérgio gravou para a família. Como ele, todos os dias somos bombardeados com notícias tremendas, no meio desta penumbra pandémica. Talvez pensamos que uma natureza que mata, que destrói, não deveria existir. É bela, mas faz doer, parafraseando Nemésio. A morte faz parte da sua infinita vitalidade!
Pode não haver muitos motivos para sorrir. Dois mil e vinte tem sido mesmo muito difícil e as consequências serão muitas. Perdemos muitas alegrias, muitas seguranças…
Não se pode ser indiferente ao sofrimento. O afastamento de Deus é verdadeiramente sério. As perguntas tornam-se profundas. Como será o nosso amanhã?
Não é só a dor que afasta um homem de Deus, mas a perda de sentido para a vida. No diálogo com uma pessoa ferida, em sofrimento atroz, não se pode dizer que o sofrimento tem sentido. Não serve de nada dizer que Deus a ama. Vai pensar que estamos a gozar, ou, que somos absolutamente insensíveis. Tais palavras são vazias, podem mesmo ser muito duras.
O sofrimento é um absurdo. Apenas devo suportar com ele o sem sentido, tolerar a sua dúvida e rebelião e interrogar-me acerca do sentido da minha própria fé. Karl Rahner afirma que devo aguentar a incompreensibilidade do sofrimento e buscar nele o mistério. Então, talvez, possa, após a rebelião e a dúvida, entregar-me e mergulhar na incompreensibilidade de Deus e confiar que nela encontro o seu amor concebível, porque se fez carne. Credo quia absurdum est, como afirma Tertuliano no De carne Christi. A aparência da encarnação, defendida pelo docetismo, é assim desmascarada pela incongruência de um Deus que se faz carne. É possível? Pela lógica não, pelo amor sim! A encarnação de um Deus assim dá sentido ao incompreensível, porque nada nele é segundo a lógica. Apesar disso, o Menino nasce, extremamente pobre, sem luzinhas, sem árvores de Natal, sem banquetes, sem multidões. Nasce nu, em palhinhas… semelhante, solidário com a miséria humana. Aí está a sua grandeza. Não foi feito segundo os nossos desenhos de régua e esquadro.
Um Deus misericórdia não é um Deus fraco. A sua grandeza é ser connosco. Quando a fé em Deus desaparece, deixa-se às costas um vazio e um frio infinito. Esfuma-se qualquer esperança num sentido último e numa última dádiva. Creio assim. Não numa abstração, ou numa imaginária coletiva ou litúrgica. Fez-se parto de amor.
É essa experiência que precisa de ser anunciada. Esta geração que nasce sem socialização religiosa não faz ideia do que é isso. Não serve de nada mostrar a um ateu um transcendental. A afirmação da possibilidade e da necessidade de introdução numa experiência originária de Deus não é palavreado vazio. É um parto de amor!
Dá-lhe um beijo!
Escuta-o e oferece-lhe um abraço!
Surpreende-o com um gesto de amor!
Diz-lhe com alegria: é Natal!
Assim, talvez, ele acredite que Deus nasceu!