Pelo Padre José Júlio Rocha
Aquela espinha sempre dobrada na cervical, aquela cara sempre a procurar qualquer coisa no chão. Sempre sério, sempre triste, sempre ausente. O Garaua já passou dos cinquenta mas, estranhamente, parece mais novo. Magro, cabelos castanhos ligeiramente claros, olhos esverdeados, rosto enrugado e sempre muito sério. Devemos ser da mesma idade. Conheci-o por volta dos dez, doze anos, numa das freguesias vizinhas, e era um miúdo que sabia pensar. Propenso à reflexão mas também a uma conversa animada, o Caraua era, na linguagem que usávamos às suas escondidas, um “maricas”. Há quarenta e alguns anos, dizer-se de alguém que era “maricas” tinha um peso solene, não tanto brejeiro, mais sério. Costumávamos ter pena deles, quando eram introvertidos, como o Garaua; ou zombar dos extrovertidos. Nessa altura não encaixámos bem que os “maricas” não eram uma casta à parte, tal como os negros, os pobres ou os louros de olhos azuis. O Garaua disfarçava muito bem. Só que gostava de estar mais com as raparigas, não jogava futebol nem dizia palavrões nem olhava as “gajas” com aquela cara de atrevimento com que os “teenagers” gostavam de olhar para mostrar que eram mais homens do que realmente eram. O Garaua, desde pequenino, era um excluído. Ficámos muito amigos, porque eu admirava a curiosidade dele em pormenores interessantíssimos, a sua maneira de falar, a alegria com que efabulava histórias.
Mais de quarenta anos depois, o Garaua é um homem destruído. Guardou-se sempre dentro de um estranho armário, nunca – que eu saiba – ninguém soube, pela boca dele, da sua homossexualidade escondida. Guardou-a a sete cadeados, filho que era de uma família férrea, intolerante, castradora. Hoje vive nos intervalos das suas depressões cadenciadas. A cada outono ou primavera ele é visitado pela noite escura, deitado na cama, às escuras, a ansiedade e a angústia sempre vizinhas da sua existência.
Há mais de quarenta anos que não falava com ele. Tomámos um café demorado, numa época em que ele estava a descer para uma depressão previsível. Falou-me de não ter projetos nenhuns, desta vida insuportável que ele tenta ludibriar pela melhor, mas os fantasmas regressam sempre, sempre pelas mesmas épocas, sempre medonhos, agigantados e ameaçadores. Não lhe vi sorriso. Não lhe vi brilho nos olhos verdes, apenas uma tristeza afundada nos glóbulos oculares, uma desmandada vontade de adormecer de tudo, desistir da vida, morrer três ou quatro vezes para morrer mesmo. Os olhos são caídos e bondosos, as mãos tremem, comprimidos, vive tão sozinho que nem gato nem cão, os mesmos rituais, ir buscar comida, fazer umas voltas, trabalhar nuns biscates, não ser nem ter mais nada nem ninguém. Uma solidão assim não é fácil de encontrar.
O Garaua nunca revelou, assumiu ou viveu a sua sexualidade. Sempre teve medo dela. O rigor da família, a severa pressão social dos anos setenta e oitenta fizeram-lhe mal. Escondeu tudo o que podia esconder. Era um homem proibido. Os seus sentimentos e a sua sexualidade eram, mais do que um tabu, um pecado. Ele era um pecado. O Garaua dividiu-se ao meio. O lado de fora era simpático e acolhedor, nada agressivo, parecia um rapaz resolvido, realizado, cheio de paz. O lado de dentro era uma bomba atómica em sobreaquecimento. Viveu todos os seus conflitos no mais escuro silêncio e este embate entre o eu exterior e o eu interior deu naquilo que ele é hoje.
O Natal do Caraua foi perto de nada. Apenas o incómodo de, no dia 25 de dezembro, estar tudo fechado e ele passar a manhã e a tarde a ver televisão, afundado nos seus negrumes, cada vez mais obcecado e vazio, a ver a tarde transformar-se em noite e com fome, solidão e uma garrafa de aguardente ao lado a adormecer-lhe a tristeza.
À nossa volta estamos repletos de homens e mulheres assim, vítimas de quê? Essa é a pergunta. Vítimas da sociedade, é isso mesmo! Mas o que é a sociedade? Quando dizemos que alguém é vítima da sociedade estamos a dizer exatamente o quê? Não sei bem, mas uma coisa eu sei: estamos a desculpar-nos. Neste caso, a “sociedade” é um ente sem existência, uma abstração, um bordão para darmos a culpa dos males da sociedade a uma sociedade que não é sociedade nenhuma. É a maneira mais fácil de dizer que a culpa é dos outros. A sociedade são todos menos eu.
Na crónica passada falei do fenómeno “woke”, uma decrépita idealização da debilidade, a exaltação da nulidade. Dou-vos um exemplo de como o fenómeno “woke” até ataca a arte: a banana colada à parede com uma fita-cola cinzenta, de Maurizio Cattelan, vendida por seis milhões de dólares e comida no dia seguinte pelo excelso comprador é tão obra de arte como se eu começasse a teclar desesperadamente no meu teclado e enchesse uma página inteira com gatafunhos à sorte, de olhos fechados, e dissesse depois: “eis o meu melhor texto literário.” Não é arte e pronto! Ou é a arte “woke”. O “wokismo” não é aquilo que o vulgo normalmente pensa: é um fenómeno bem mais estrutural da humanidade. A questão é a seguinte: porque é que queremos justificar tudo, desculpar tudo, regularizar tudo, facilitar tudo, mas tudo continua na mesma? Provavelmente porque desejamos uma sociedade inclusiva mas não fazemos nada por isso. Uma sociedade inclusiva não é uma sociedade frágil onde o ideal é não ofender ninguém, incomodar ninguém, fragilizando todos. Uma sociedade inclusiva é uma sociedade que pensa a sério naquele Garaua que tem duas perspetivas à vista: a casa de saúde ou o suicídio. Que o seu destino seja uma responsabilidade de todos é o que chamamos uma sociedade inclusiva.
Bom Natal e Bom Ano.