Pelo Pe Teodoro Medeiros
Por vezes, é como se fosse um piquenique de família (“quem é que deixou o saco de carvão atrás?” “Eu disse para tu trazeres”; “eu trouxe os sumos e as cervejas”). Ou seja, é impossível fingir que não faz falta. No caso que é, que pena, o último filme do mais russo cineasta americano: Terence Malick.
“Cavaleiro de Copas” é um filme estranhamente bonito e vazio ao mesmo tempo. A história de um argumentista que anda perdido por Los Angeles. Imagens bonitas da cidade e da natureza. E fica-se por aqui; apesar de algumas citações e irritantes sussurros em voz off dos personagens. Sem contar com os remorsos sobre a morte de alguém.
Os atores são famosos: Christian Bale, Natalie Portman, Cate Blanchett, Antonio Banderas (que nunca foi grande ator) e sabe-se lá ainda quantas atrizes como namoradas do protagonista. Bem claro: não é um filme sobre o amor, antes sobre a deriva emocional de quem tem tudo o que quer.
Depois do resumo, a avaliação: não é um filme feliz, não cria laços com as personagens e as questões filosóficas cheiram a requentado. É um existencialismo sem angústia, uma paródia dos valores antigos perdidos, um épico de anti-heróis de papelão. Provavelmente agrada aos críticos formais, aos abusados dos tiques de filmagem (que se dobraram às travessuras de Sorrentino, por exemplo).
Desengane-se quem visse aqui uma reação a um filme de alma pouco cristã: o problema aqui é mesmo que não trouxeram alma. De forma que quando, a meio filme, o protagonista pergunta (um dos tais sussurros) “para onde hei-de ir?” A resposta que urge (usando a metáfora do Apocalipse) é talvez a da maldição eterna, destinada ao diabo e aos seus anjos (leia-se, aos filmes que prometiam luz mas só trouxeram trevas).
Ficamos todos a perder; quem não gosta de filmes chatos aponta (com razão) para esta “obra” e confirma os seus preconceitos; quem viu “A Árvore da Vida” com interesse vê as suas esperanças defraudadas. A impressão que dá é que o realizador se apaixonou pela forma desse grande filme (“A Árvore da Vida”) e, vai daí, decidiu-se a reproduzir o modelo numa história bastante diferente.
E começam aí os problemas: “A Árvore” apresentava o sublime da natureza, lado a lado com os limites da humanidade. Citava o livro de Job, reproduzindo a lógica dos discursos divinos que o vencem (“onde estavas tu quando Eu fiz o mundo?”). Os sussurros não irritavam porque aproveitavam a porta aberta de uma história forte nos 2 planos).
A beleza das imagens evocava a pergunta, dava-lhe mais força; o que compreendi eu da vida, das pessoas… que valor têm os sentimentos que tenho e não deveriam ser outros? Horizontes largos, está bom de ver. A catedral assentava, imponente, em tudo isto, servindo-se de uma narrativa não linear, sem princípio, meio e fim claros.
Rompia-se a regra da Poética de Aristóteles sobre a tragédia: no princípio tudo é possível, no fim, tudo é necessário. Ora, quem assim age, sem pôr os pés pelas mãos, merece todo o aplauso. Porquê então, seguir aqui a mesma estrutura? Fica tudo ao contrário: quem fica à deriva somos todos nós, sem nenhum ponto de referência que não a deriva do personagem.
De onde se conclui que tudo o que se vê fala da deriva e não aponta para lado nenhum. Duas horas nisto? De imagens que dizem “eu não significo nada”, “eu não levo a nada”? É como uma conferência de imprensa sobre uma mosca que lhe pousou no nariz há 2 anos.
Em contraste, “Investigação a um cidadão acima de qualquer suspeita” é um filme italiano direto e memorável. O ponto de partida é contraditório: um homem assassina uma mulher e deixa de propósito, pistas que o podem incriminar. Assim mesmo, sem mais.
Começa o filme e a narração apresenta-se na forma invertida, muito à inspetor Columbo: primeiro vê-se o crime e só depois se perceberá o porquê. Trata-se de um homem importante, com muita gente que se lhe submete e até o teme. Também ele é um “cavaleiro de copas” em deriva interior, aborrecido com o mundo que tudo lhe deu.
A câmara segue-o, foca-o, centraliza-o, torna-o imponente enquanto ele fala, sempre com arrogância e altivez. Não é cinema ultrapassado: é a apresentação de um deus na terra, um deus aborrecido com a sua própria impunidade. Na realidade, é comandante da polícia, sabe que nunca o condenarão e isso, pasme-se, é fonte de grande frustração.
Por isso faz o que pode para ser apanhado: até os manda a sua casa, conferir a sua gravata (à qual falta o fio achado no local do crime). Desapontado, vemo-lo retirá-la de dentro de um sapato depois da busca infrutífera por parte dos agentes: não levavam a sério que pudesse ser ele o culpado.
A crítica é feita à corrupção italiana (o ditado diz que a corrupção nasceu em Roma e nunca a abandonou). Nas últimas cenas do filme, saborosamente irónicas, surreais, os seus superiores acusam-no de ser inocente. Pedem-lhe mesmo que prove a sua culpa; acham que ele os quer enganar.
Não surpreende a citação de Kafka no fim. Óscar de melhor filme estrangeiro em 1970, com realização de Elio Petri e um muito competente Gian Maria Volonté.