Túmulos que ninguém visita

Pelo padre José Júlio Rocha

Franz Jägerstätter (nome difícil) era um pacífico agricultor austríaco, habitante de uma aldeia perto de Salzburgo, marido dedicado e pai de três lindas meninas nos campos idílicos do Tirol, paisagens de cortar a alma, como são as dos nossos insubstituíveis Açores.

Um outro austríaco, muito mais famoso e muito menos digno, Adolf Hitler, anexou a Áustria em 1938. Com a Alemanha e a Áustria unidas, o regime Nazi empreendeu a tarefa de arrolar todo o ser humano disponível para o exército que havia de destruir a Europa e semear a mais hedionda guerra que o mundo alguma vez viu.

Católico convicto, sacristão da sua aldeia, fiel devoto da sagrada Eucaristia, bom pai, bom marido, amado pelos habitantes, Franz sabia que o ódio aos judeus, o culto da raça ariana, os gritos bélicos de vingança por uma Alemanha de orgulho ferido, o culto da imagem de um líder messiânico, as milícias organizadas para semear o caos e levantar o orgulho germânico não condiziam com o Jesus em que acreditava.

Fez-se objetor de consciência, enquanto todos os homens novos da sua aldeia se ofereciam ao exército Nazi, uns por medo, outros por convicção. Aderiam, soldados, ao regime que prometia a ressurreição de fazer a Alemanha grande outra vez (mais ou menos “make Germany great again”, não o sei dizer em alemão). Franz não quis alinhar no exército de Hitler. Falou com o padre da aldeia, que também não gostava do regime, mas que sentia o inexorável peso do medo. O padre aconselhou-o a alinhar-se. Não haveria uma guerra, dizia o padre, e, se houvesse, seria rápida e quase inócua, e Hitler perderia certamente. Havia que ser prático: Franz tinha uma quinta, família, três filhas com menos de seis anos, mais valeria alistar-se e, dali a um ano, voltar para os seus, do que ser preso e torturado em virtude da sua consciência que não aceitava o imundo regime.

Franz nunca desistiu. Adepto incondicional de Jesus Cristo, entalado entre a família e a consciência, afirmava que era melhor sofrer a injustiça do que praticá-la. Disse não ao exército Nazi. Isso, para os habitantes da sua aldeia, era um perigo, um medo, um ultraje contra a nação germânica, um ato de rebeldia que atrairia o opróbrio sobre o povoado. Cuspiam nos pés das suas filhas, viravam a cara à esposa, chegaram a destruir as colheitas de Franz.

Franz foi preso. Algemado, quando o conduziam para o cárcere, passou diante de um crucifixo daqueles que se veem nos caminhos de muitos lugares do Tirol. Aquele Jesus crucificado pela Sua bondade e inocência, aquele Jesus morto pela verdade, pela justiça e pela paz, que era o seu herói, aquela vítima do ódio, em que lhe podia valer? Franz não podia fazer aquilo em que acreditava que estava errado. A sua inabalável consciência não lhe permitia pactuar com o mal.

O que é um homem só, só e a sua consciência, diante de todo o mundo que o condena? Que força brutal deve ter um homem, que fé inabalável lhe deve alimentar a alma contra o poder absoluto de lhe tirar a vida? Franz teve tempo de salvar a mulher e as filhas, não teve tempo de poupar a sua vida. A nove de agosto de 1943, Franz foi executado por desprezo à moral militar. Rezou todos os dias da sua vida. Rezou todos os dias para que Jesus lhe desse a reta consciência de nunca aderir nem praticar o mal.

Este exemplo heroico de obediência a uma consciência cristã, este conflito titânico de consciência valeu-lhe a morte na guilhotina. Esquecido como milhões de heróis vítimas dos crimes de todas as ditaduras que, ao longo dos tempos, têm sujado a dignidade humana, morreu anónimo.

Mas em junho de 2007, o Papa Bento XVI declarou-o beato da Santa Igreja, em nome dos milhões de heróis anónimos que deram a sua vida pela liberdade de consciência, pela paz, pela democracia, pelo direito inalienável de escolher o amor em vez do ódio.

Hitler, hoje, volta a ser admirado, por vezes idolatrado ou, pelo menos, desculpado por muitos crápulas que dão à consciência o valor de um cêntimo. Ninguém conhece Franz Jägerstätter, porque os verdadeiros heróis, como Jesus, acabam sempre por morrer esquecidos.

Vivemos tempos difíceis. Idolatramos líderes que, com cantos de sereia, narcotizam as consciências e açambarcam sectários dispostos a dar a vida por mentiras em que acreditam como verdades divinas. O assalto ao Capitólio de Washington prova que, em tempos de tensão e extremismo, o ser humano prefere o ódio tribal à verdade. Prefere a mentira à consciência reta, o culto do líder messíânico à paz. Este culto “fascizoide” do querido líder é um triste sinal dos tempos. Quando somos demasiado fracos ansiamos por um líder que anule a nossa fraqueza. Berramos por alguém que dê voz à nossa frustração de não conseguir.

O beato Franz Jägerstätter é pouco conhecido, e, no entanto, devemos a nossa liberdade àqueles que repousam em túmulos que ninguém visita.

*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio

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