O rodopio em que vivemos, aliado a uma cascata de informação que em cada dia sobre nós cai, pode deixar-nos atordoados perante a realidade e o significado dos acontecimentos.
Por isso muitas vezes temos dificuldade em discernir os planos de importância e prioridade na organização do nosso todo na relação com o mundo. As pessoas muitas vezes são esquecidas em vida, lembradas e enaltecidas na morte para, não muito tempo depois, voltarem a ser esquecidas. Sabe-se por isso que o tempo é breve e que perde tempo quem se cansa a esculpir estátuas a si próprio. Com poucos sopros, ficará caída e rapidamente coberta de uma areia fina que transforma em deserto o que parecia uma metrópole de arranha-céus.
Nada disto convida ao desprezo por nós e por cada tempo. Apenas lembra que o nosso olhar tem de ser severo e claro para fixar o que merece ser contemplado e desfocar os efémeros que se apresentam como absolutos. Vemos homens e mulheres que marcaram a história e as nossas próprias histórias pessoais e que por isso merecem uma perenidade dentro dos nossos limites.
Lembrei, há pouco, em conversa com um amigo, o cardeal Martini que tive a honra de conhecer pessoalmente e até de trabalhar com ele nalguns temas de comunicação social em que ele era perito. Assisti, no seu gabinete, a um apontamento de rádio que fazia às sextas feiras com uma clareza quer na leitura da realidade quer na luz que, do Evangelho, projectava sobre os acontecimentos. Mas o que me lembrou o meu amigo foi uma conferência que o Cardeal Martini proferiu em Jerusalém. Aí se refugiou nos últimos anos para se sentir mais próximo do grande Livro, a Bíblia que sempre o apaixonou. Três coisas, três – dizia – essenciais na nossa atitude perante a Palavra. Primeira: que diz o texto ? Não o que imagino ou filtro, mas o que está lá?
Segunda: que diz este texto à Igreja? Que actualidade tem, que tem a ver com o hoje? Terceira: que me diz a mim, em que me interpela, esclarece, repreende, estimula?
E fico por aqui. A lembrar um homem que foi marcante para a Igreja e para a cultura e que pode – sempre a poeira do tempo – estar esquecido. E o que recordei com o amigo que fez em Jerusalém um ano sabático e com quem me encontrei há pouco no Monte das Oliveiras. Quando nos despedimos lembrámos de novo os três pontos cardeais de Martini. E que, passado o tempo, fazem vivo um homem que ambos admirámos em vida.
P. António Rego