Pelo padre Hélder Miranda Alexandre*
Sinceramente, já não se pode escutar ou ler as notícias acerca da pandemia, mas a realidade impõe-se ferozmente. Ariano Suassuna dizia que existem três tipos de mentira: aquela que é dura e que prejudica o próximo, aquela que é doce e que não faz mal e a estatística. Posso não concordar, mas os números podem iludir as pessoas e histórias de vida que indicam.
Andrà tutto bene (vai ficar tudo bem), a música do português Cristovám Eleva, viral durante a primeira quarentena, e que fez levantar o ânimo e a unidade, continua a ser um mote necessário. A fase crítica dos primeiros tempos não só teima em não terminar, como se exponenciou. Seguem-se novas fases e ninguém sabe quando isto vai acabar. Os últimos dias têm sido assustadores: filas de ambulâncias, centenas de mortes (mais de um avião por dia). Pela primeira vez, os médicos portugueses debatem-se com o dilema ético, extremamente extenuados. Se ontem era mau, hoje é pior. O sistema de saúde está no limite. Nos Estados Unidos já morreram mais americanos do que em toda a segunda guerra mundial. Felizmente o isolamento das ilhas vai-nos protegendo, mas não se sabe até quando, se é que permanecerá. Abre-se diante de nós o dia que há-de vir. Não sabemos como olhar para o passado, se como um temporal violento, ou um conflito bélico ou uma ingente tragédia.
Há-que viver um isolamento necessário e muito difícil, porque agora a caridade não é tocar (tremenda ironia!). O nosso olhar vira-se para dentro das paredes. Por muito que se evite pensar nisso, a pressão existe. Irmãos que partem violentamente isolados. Familiares que não estar com os seus. Trabalhos retomados por pouco tempo, mas na sombra da incerteza. Acresce a dança de acusações entre governos, partidos e ideologias, por vezes por causa de uma patética busca de votos.
Nesta pandemia o espírito pode manifestar-se débil, forte ou humilde, segundo uma reflexão de Roberto Repole (Il pensiero umile. In ascolto della Rivelazione). Se é fácil intuir o que caracteriza ser forte ou débil, o desafio está na construção da humildade, como húmus de caridade. A Carta Encíclica Fratelli Tutti de Francisco pode ser um sinal e deve ser levada muito a sério. Se tomarmos consciência do apelo à fraternidade universal, como navegantes do mesmo barco, sairemos disto fortemente redimensionados. Acreditávamos no otimismo científico, que ainda permanece em parte, mas o vírus trouxe a consciência da derrota. Passámos da experiência de não ter tempo para nós e para as nossas famílias para um excesso de tempo; de sempre apressados e distraídos para um não saber que fazer. Os tempos recentes fazem-nos descobrir, de improviso, que devemos mudar os hábitos, relações e sobretudo as nossas opiniões.
O coronavírus fez-nos ajoelhar como S. Francisco diante do leproso, e orientar-nos para Jesus como aquele que se humilhou até à morte de cruz. Fomos restituídos à humildade depois de passar da força para a fraqueza. Foi-nos restituído um olhar para um futuro, que se chama esperança. Tivemos de sair das planificações para uma purificação, através do medo e do desespero. Não sabemos nem o quê desta realidade, nem o porquê, mas seria tempo perdido viver esta descida como algo que se deve esquecer para retornar ao pedestal. Jesus abaixou-se para viver na fraqueza, tornou-se partilha, comprometeu-se connosco, tornou-se necessitado. Essa é a estrada de Deus, a sua trajetória a imitar. Ser cristão é seguir os seus passos! Pode parecer o contrário, mas o Espírito está a evangelizar mais que do que podemos intuir e do que todos os nossos projetos pastorais.
*O padre Hélder Miranda Alexandre é reitor do Seminário Episcopal