Por Carmo Rodeia
Todas as regiões têm expressões curiosas e que revelam bem a forma como comunicamos uns com os outros.
No Alentejo, por exemplo, de onde sou natural , dizer “tem avondo” significa que é suficiente. No dicionário Priberam de língua portuguesa, avondo , que deriva do latim abundus, é apresentado como um advérbio que significa de forma abundante.
A época de Natal é habitualmente uma época de abundância, na maior parte das vezes tocando o excesso. Consumismo demais, gastamos demais, comemos demais… até somos mais solidários, o que é muito louvável porque a caridade é a marca de qualquer cristão e portanto no Natal, e em todos os tempos do ano já agora, devemos ser excessivamente generosos. Mas, ao mesmo tempo que estamos em estado de abundância, seja lá do que for, fartos até da nossa abundância, de estômago gasto em longas e difíceis digestões, o nosso coração é faminto. Tantas vezes ganimos e gememos de fome, de uma fome que o pão não consola, de uma fome de presença, de um carinho, de um gesto capaz de responder às inquietações profundas do nosso coração, da nossa alma. E, se na abundância destes dias até conseguimos saciar momentaneamente a fome a tantas famílias, com a tal caridade abundante do Natal, somos interpelados a perceber de que fome nos queixamos. Sobretudo, de que fome se queixam os outros.
Não consigo imaginar a fome que mata à mingua tantas e tantos idosos que por estes dias estão em lares, ou residências como habitualmente digo respeitosamente como que para aliviar a minha própria derrota de ter recorrido a uma delas, que por força do covid, agora na variante poderosa e incontrolável Omicron, esperam por uma luz, o tal gesto que lhes mitigue a fome do carinho dos seus.
Deste tempo de Advento e de Natal retemos habitualmente a partir da liturgia a ideia de um povo que andava nas trevas e viu uma grande luz; os pastores que apascentavam na noite, no desamparo dos campos e que foram de repente cercados pela luz… Esta luz traz necessariamente um novo entendimento, uma nova compreensão do que é a vida, ou pelo menos do que ela deve ser. Mas será que estamos a levar esta luz aos nossos idosos?
Retenho o que o Papa nos disse no dia dos avós este ano: os avós e os idosos não são sobras de vida, desperdícios para jogar fora.
No Evangelho de São João, diante da multidão faminta, quando Jesus perguntou a Filipe: “Onde havemos de comprar pão para esta gente comer?”, os cinco pães e dois peixes oferecidos pelo jovem pareciam muito pouco, insuficientes para tanta gente com fome. Mas, no final acabou por sobrar comida. “Recolhei os pedaços que sobraram, para que nada se perca”, disse Jesus. Matar a fome, mas sobretudo matar a fome de amor e de felicidade. É essa a proposta de Jesus. Como? Multiplicando o pouco que há através da partilha, do cuidado e do olhar sobre o outro.
Foi isso que fizeram os nossos idosos ao longo de toda a vida, quando foram pais e avós atentos aos filhos e aos netos, de colo sempre preparado para acolher a nossa tristeza, a nossa dúvida, a nossa contradição, a cada dia e a cada hora do nosso crescimento. Quando nos sentíamos incompreendidos ou com medo dos desafios da vida, eles deram-se conta de nós, do que estava a mudar no nosso coração, das nossas lágrimas escondidas e dos sonhos que trazíamos dentro de nós. Foi graças a este amor que nos tornamos adultos, pais e mães, avós e avôs, como que repetindo o ciclo da vida.
“E, nós!”, interpelava o Papa. “Que olhar temos para com os avós e os idosos? Quando foi a última vez que fizemos companhia ou telefonamos a um idoso para o certificar da nossa proximidade e deixar-nos abençoar pelas suas palavras?”
Concluía o Papa Francisco: “Os avós e os idosos não são sobras de vida, desperdícios para jogar fora. Mas são aqueles preciosos pedaços de pão deixados na mesa da nossa vida, que ainda nos podem nutrir com uma fragrância que perdemos, «a fragrância da memória».”
E, nós, pergunto eu. Saberemos guardar a vida deles, aliviar as suas dificuldades, atender às suas necessidades, criar as condições que lhes permitam ver facilitadas as suas tarefas diárias e não se sintam sozinhos?
Podemos atafulhar a nossa árvore de Natal de presentes, inclusive para os nossos idosos, dando-lhes este mundo e o outro, as guloseimas de que tanto gostam, as pantufas e a roupa quentinha que os aquecem, mas tenho para mim que qualquer um deles diria “tem avondo” se recebesse apenas o carinho da nossa presença. E isso, não se compra em nenhuma loja do mundo a não ser na abundância do nosso coração.
Há uma semana atrás, quando estava a fazer o meu presépio, bem mais pequeno do que o que costumava fazer debaixo da árvore de Natal quando os miúdos eram crianças e juntos íamos ao musgo, apanhar ervas diferentes que simulassem vegetação e troncos para construir caminhos, que nos levavam serradura adentro até à cabana do menino Jesus, construída a partir de aparas de madeira e palha, comecei a imaginar cada uma das figuras e a sua função no presépio, desafiando-me a colocar-me lá também e a descobrir o meu próprio papel naquele cenário, procurando compreender que em Jesus Deus se torna humano para nos dizer que todo nós nos podemos transformar no seu rosto junto dos que nos são próximos. Neste caso, mesmo próximos. Se não nos roubarem isso, também eu digo “tem avondo”.
Um feliz e Santo Natal para todos.