Superação adiada

 

© Direitos Reservados

Por Carmo Rodeia

Vivi nos últimos dois dias mais um momento de interpelação à minha fé.

Regressei de novo “a casa”, sim, porque regressar aos Açores, qualquer que seja a ilha, é sempre regressar a casa, para desatar o nó da saudade.

O desafio desta vez era subir a montanha do Pico. Os mais próximos diziam que até podia conseguir mas era uma insanidade que a saúde do coração não consentia e o sedentarismo forçado, para o qual um covid severo há um ano me atirou, desaconselhava. Mas eu, porventura munida da minha mais do que consciente teimosia arrisquei de forma entusiasmada, igual à vontade que senti naquela noite da vigília jovem em Ponta Delgada, quando ouvi, acabadinha de chegar para o domingo do Senhor Santo Cristo, D. Armando a anunciar que na pré-jornada (período que precede a Jornada Mundial da Juventude de Lisboa) iria subir ao topo de Portugal com os jovens açorianos. Até as lágrimas me caíram por tamanha ousadia. Que bela ideia! Que belo programa pastoral! Este vai ser o evento da pré-jornada em termos nacionais, pensei logo. Aí estava a comunicadora a germinar já, promovendo mentalmente um roteiro pelos órgãos de comunicação social que iriam adorar a notícia: subir a montanha, o sermão das bem-aventuranças; a transfiguração no monte Tabor; o caminho e a entreajuda; a escuta e a consideração dos jovens, açorianos e de todos os lugares do mundo que carregaríamos nas mochilas; a ecologia; o cuidado da casa comum… Meu Deus, foi um turbilhão de emoções e na minha cabeça só pensava que rica pré-jornada. Quem me dera ser jovem outra vez. Talvez a forma de mitigar este desejo tivesse sido mesmo a tentação de subir a montanha.

E foi! Só subi cerca de mil metros porque o coração não aguentou como me tinham prevenido, mas vi os outros subirem. Vi o meu bispo cheio de força, aquela que se espera de um timoneiro que alia a resistência física ao exemplo de preseverança, que ultrapassa o cansaço.

Vi os meus colegas jornalistas, a quem desafiei para esta aventura, gemendo de cansaço com câmaras de televisão às costas, baterias e live view,  que garantiam o direto.

Vi os jovens,  os sacerdotes e religiosas que os acompanharam de olhos brilhantes entusiasmados como já não os via há muito tempo.

Todos queriam subir. Ninguém disfarçou o medo; todos chegaram podres de cansaço. Nenhum deles esquecerá o caminho. As pernas ainda doem; o corpo pede água salgada para atenuar a fadiga muscular mas ninguém se arrependeu. Acho que no final, a palavra mais ouvida e trocada foi “obrigado”. A todos, de todos, sem excepção.

O guia, que nos pôs à prova logo no primeiro troço até à furna- “quem lá chegasse sem dificuldade poderia prosseguir”-. Uma espécie de anúncio de que a seleção natural das espécies estava em marcha.

Os bombeiros atenciosos,  a quem nunca faltou uma palavra de ânimo.

Todos, mas mesmo todos, sentiram que não estavam sozinhos. O caminho era de todos.

Desci enquanto os outros continuaram a subir. Desisti quando os outros prosseguiram. És fraca, pensava na descida, lágrima a correr pela face. Não sei se eram lágrimas de tristeza ou de raiva. Por não ter conseguido. Por ter sido teimosa. Por achar que podia mesmo diante da evidência da insanidade da decisão. Quis muito, foi só isso. Não consegui. Paciência para mim e para a minha vontade. O que ganhei? A consciência de que o caminho não é só nosso e não depende apenas de nós. Depende sobretudo da nossa liberdade de fazer as escolhas corretas, lendo os sinais, a cada dia da vida.

Ser pobre de espírito é ser humilde; ser manso é ser gentil, paciente e tolerante ; ser justo é perceber os ensinamentos que a vida nos dá…Isto é o sermão que tanto desejei recordar no ponto mais alto de Portugal.

É o que poeticamente confessava o escritor Luigi Santucci na sua obra Peregrinos na Terra Santa: “Homem alpino que eu sou, quero continuar a acreditar no monte de Jesus. Essa rapsódia revolucionária, que nos exalta nas suas cadências ainda antes que nos conteúdos, para mim, tem ar e sabor de montanha. Quando eu a ouço de novo, na verdade, sinto no fundo um murmúrio de coros de montanha (…) “.

Desta vez não a consegui subir, mas ouvi o Seu grito. Tenho de voltar ao sermão, para além das palavras.

Scroll to Top