Sumos Sacerdotes

Pelo Pe. Teodoro Medeiros

Juntar todos os outros factores; atores, estória, música e até orçamento iguais, mas fazer dois filmes (duas vezes o mesmo filme) por dois realizadores diversos. A experiência tanto mais bem sucedida quanto maior as diferenças no olhar autoral de cada um. É esse o contributo deles; o ritmo narrativo e a atmosfera que impregna os fiéis.

Ao longo da história, os mais bem sucedidos foram os que criaram mundos próprios: quem vê reconhece um estilo, um espaço livre instalado contra os lugares comuns. É verdade que isso acontece à custa de pouca popularidade: à cabeça deste grupo poderá estar Béla Tarr (a crítica derrete-se; o público queima-os).

Eisenstein construiu as primeiras simbólicas na caracterização dos personagens: um homem medonho entra numa sala e um ou outro objeto dizem tudo sobre o seu caráter. Isto nos princípios, mas foi o começo da subtileza, da arte. E nem os espetadores dos Lumiére, fugindo do comboio na tela, sentiram impato maior.

Nos anos 40, um jovem Orson welles elaborou o seu “Citizen Kane” em mil detalhes: a distância entre o casal ao pequeno almoço tornou-se cada vez maior; a câmara focava com a mesma nitidez personagens perto e longe no mesmo plano; uma parte escura da tela transitava para uma parte clara na cena a seguir.

“O Processo” baseado no romance de Kafka, será talvez o filme com os cenários mais bem construídos de sempre. Parece exagero mas não é: as proporções, as bibliotecas, os inúmeros dossiers e a sequência da fuga entre sombras fazem corar até “Sin City”, o prodígio da era digital.

Itália ainda não se recompôs, e ainda bem, do neo-realismo e de De Sica: gente sofrida e perdedora, retrato do que se tinha vivido na Segunda Grande Guerra. Não se fazia bonito, as rugas e as barbas por fazer exprimiam angústias desiludidas de vidas sem justiça.

No país do sol nascente, Kurosawa começava a criar novas experiências narrativas extasiantes. Eram samurais e códigos de honra violentos mas também traços da sempre inalcançável complexidade humana. E isto ainda antes de começar a pintar o céu de vermelho.

As imagens ficam na retina, mesmo que não saibamos bem o que querem dizer: o maior Fellini foi o psicanalítico, o que criou sonhos povoados de mitos ancestrais. Deixou “8½” ou “Satyricon”. Parecia dizer: -“Não preciso de roteiro; só de imaginação”.

Outro grande, também italiano: Antonioni. Trabalhando muitas vezes com o poeta Tonino Guerra, fotografou a alma dos anos sessenta e a sua ressaca. A procura de identidade, a desilusão, a loucura, o vazio. Jack Nicholson e Monica Vitti nunca foram melhores.

Mudado de Londres para Hollywood, Hitchcock desenvolveu em terras americanas o seu sentido prático de contar dramas policiais. Refez alguns dos seus filmes ingleses, tornou-se excelente teorizador e praticante de cinema: um faro apurado na montagem das cenas.

Aprender Hitchcock é ver como se pode complicar tanto o que parecia simples à primeira vista: mas depois, vendo o efeito final, tudo parece perfeito, o arquétipo do cinema. A morte de “Psico” é tão agradável que nos devíamos todos sentir mal por concordar.

Stanley Kubrick, o homem de quem se diz que todos os filmes foram obras-primas. Uma rara capacidade de humor mas que não lhe retirava o seu humanismo. “Paths of Glory” é um filme de guerra mas ensina, sem lamechice, que todos os homens são mesmo irmãos.

“Dr. Estranho Amor” é outro filme que troça do poder das armas. O cenário da Guerra Fria e o perigo da destruição acidental do mundo. Escandalosamente atual a forma como uma conversa ao telefone entre presidentes está repleta de pequenos ridículos.

Agora que Malick se tornou a Maya do cinema, o cineasta teólogo Andrey Tarkosky brilha ainda com mais força. Sempre insatisfeito, buscava deixar um testamento sapiencial em cada filme, e talvez seja essa a razão de o seu cinema ser um pouco exigente.

Além do magnífico “Solaris”, “O Sacrifício” lamenta a perda do sentido do religioso no mundo contemporâneo: um homem oferece a sua vida para salvar a humanidade de uma catástrofe cósmica. Um drama que explode numa catarse aristotélica: o personagem purifica-nos.

Se o cinema é uma religião, então o realizador é quem preside às celebrações e tem a responsabilidade de explicar o sentido dos ritos. A comunidade congregada traz a própria vida, as suas interrogações e exprime-as sem palavras, o mais das vezes. Ao sair, poderá não ter todas as respostas.

Quem sabe se não por aí que se descobre que somos todos iguais?

P.S. –Um dos grandes privilégios da tecnologia são as edições de alta qualidade dos grandes filmes. Imagem restaurada, comentários áudio elucidativos, documentários “making of”, entrevistas, provas do elenco. Estes recursos só estão disponíveis em Blu-ray ou DVD: enquanto assim for, o digital não é alternativa ao físico e ainda bem.

 

 

Scroll to Top