Sonhava-se. Hoje não

Pelo padre José Júlio Rocha

Foto: Igreja Açores/Arquivo

E eu, às quatro da manhã, naquele retiro de jovens, ainda confessava. Cinquenta rapazes e raparigas, eu era padre havia quatro ou cinco anos, era novembro, anos noventa, talvez 1996. O retiro chamado “Esquema 1” reunia a flor da farinha dos mais de vinte grupos de jovens da Ilha Terceira e havia um ambiente de poemas no ar. Éramos verdadeiramente amigos, conhecidos de outras bandas, até porque a juventude dos anos 80 e 90 cresceu numa das mais belas épocas da história contemporânea. Dialogávamos, expúnhamos os nossos pontos de vista e aprendíamos, desde cedo, a importância de ouvir. Outro fator tornava aquela juventude especial, mais alegre e conversadeira, com ideias discutidas até à exaustão: não havia telemóveis nem redes sociais, realidade impensável nos nossos dias. Fazia toda a diferença.

A juventude dos anos 80 e 90 trazia consigo uma enorme dose de generosidade. Eu, às quatro da manhã, na capela semiobscurecida do Palácio de Santa Catarina, a conversar com o Manel – a generosidade em pessoa – pela noite dentro: os nossos sonhos e projetos, como o de criar um grupo de jovens mais empenhado, com o nome “Um coração para o pobre”, uma iniciativa que durou ainda uns três anos, que consistia em incentivar os grupos de jovens a empenharem-se em causas sociais; ou o grupo “Ágape” (amor em grego), que, para além de se reunir todas as semanas, ia visitar os lugares da pobreza, as casas habitadas por idosos sós, doentes, lares, um mundo inteiro para amar. O David com um violão às costas percorria a ilha e o resto do mundo. Vivia-se a plenos pulmões, a vida fazia sentido, apaixonámo-nos por Jesus e uns pelos outros, experimentámos o que era amar, não foi difícil, o ambiente era de primavera. Sonhava-se.

Aprendíamos também com aqueles que nós considerávamos como ídolos, sobretudo no campo da música. Aquela canção que dominou os anos 80, “USA For Africa” (“We are the World”), que juntou o melhor da música anglo-saxónica, amealhou milhões num gesto de solidariedade para com o continente africano. Seguiram-se milhares de iniciativas onde os artistas manifestavam o sentido do Bem Comum. Multiplicavam-se iniciativas contra a pobreza, a favor da paz mundial. As letras das músicas, muitas delas idealistas, destilavam mensagens para um mundo melhor, os multimilionários daquela época dispensavam prodigamente parte das suas riquezas para ajudar as instituições de solidariedade ou criavam as suas próprias fundações. Sonhava-se. A nove de novembro de 1989, nesta onda positiva e com a ajuda de figuras inalienáveis como Gorbatchov, Reagan e João Paulo II, caía o símbolo de todas as divisões, o Muro de Berlim. Olhávamos o futuro sem medo e cheios de esperança… Sonhava-se.

Olhando o mundo trinta ou quarenta anos depois, o que é que vemos? O que restou dessa era dourada de esperança? Até onde chegámos e, sobretudo, como chegámos aqui?

A queda da ameaça soviética e o “fim” do comunismo de estado deu asas à ânsia capitalista. A ênfase estacionou sobre o capital e esqueceu o trabalho e a sua dignidade. As economias das grandes empresas e até dos estados basearam-se na mais destravada especulação e, com isso, o fosso entre muito ricos e muito pobres disparou para dimensões inimagináveis. A lei da selva popularizou-se no mundo da finança e o que interessa mesmo é o capital, não vale a pena falar de pobreza ou de emergência ambiental porque o homem sem freios vai esgotar tudo até ao fim, até ao tutano, até onde puder aguentar, até à autodestruição.

Os artistas, os músicos, hoje, “além de serem músicos sofríveis, estão preocupados em ganhar dinheiro, desfilar na passadeira vermelha, fazer anúncios para os grupos de grande luxo e posar para o Instagram e Tik-Tok. É um mundinho de narcisismo, mediocridade e intriga de tablóides” Clara Ferreira Alves dixit. E é mais ou menos isto que os jovens de hoje bebem, vá lá, dos seus ídolos: narcisismo, mediocridade, vazio de sentido de vida.

E os grandes bilionários de hoje? Já não têm as fundações sociais que os antecessores possuíam, já não se preocupam com a Etiópia ou o Sudão, com a guerra nos Balcãs ou no Ruanda, com os direitos humanos ou com a crise climática. Os 400 000 000 000 (é esse o número) de dólares que fazem de Elon Musk o homem mais rico do mundo, mais rico do que Portugal, são mesmo muitos. Bezos não está muito longe e a lista de superbilionários vai aumentando. Mas eles estão mais interessados em colocar um homem em Marte do que na Faixa de Gaza; mais entusiasmados em explorar o espaço sideral do que em matar a fome a milhões de bocas que vão definhando nas bermas das estradas dos fluxos migratórios. Nunca tivemos tanto, nunca fomos tão pouco.

O Manel, o generoso Manel de quem falei há pouco, continua, aos 50 anos, com o mesmo generosíssimo coração. Não entende, como eu, que volta é que o mundo veio a dar. Não entende, como eu, como é possível que valores que há 30 anos considerávamos inalienáveis sejam hoje pontapeados com uma jactância assustadora. Pois é, meu irmão Manel, estamos a ficar velhos. Este mundo não é para velhos… desconfio que também não seja para novos. Porque deixámos de sonhar?

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