Missa do Senhor Santo Cisto foi transferida para a Igreja de São José por causa da chuva. Cardeal sublinha que a fraternidade é o único caminho para uma nova humanidade
O Bibliotecário e Arquivista da Santa Sé sublinhou esta manhã o valor da paz e apelou ao empenho de todos na sua construção.
“Jesus mobiliza-nos para a paz, mas investe-nos a todos como artífices da paz”, disse o cardeal Tolentino de Mendonça na homilia da Missa do Senhor Santo Cristo dos Milagres a que presidiu e que, por causa da chuva, foi transferida do Campo de São Francisco para a Igreja de São José, para onde convergiram, desde madrugada, centenas de peregrinos.
Diante dos “insuportáveis sofrimentos” causados pelo “cruel e inaceitável espectáculo da guerra”, o Bibliotecário e Arquivista da Santa Sé confiou “o que está a acontecer na martirizada Ucrânia”, ao Senhor Santo Cristo dos Milagres.
A homília desta Missa, concelebrada por inúmeros sacerdotes da diocese e da diáspora, evocou a “dura tempestade que a pandemia representou e, em parte, ainda representa”, comentando a ideia de que o mundo sairia ”melhor” da crise provocada pela Covid-19.
“O pesadelo não só continua, mas parece que ainda se agrava”, disse.
D. José Tolentino afirmou que “não foi apenas a pandemia que fez adoecer o mundo. O mundo estava doente e não nos apercebíamos” disse.
O arquivista e bibliotecário da Santa Sé defendeu a necessidade de questionar o “custo humano e ambiental” da atual ideia de progresso, criticando uma visão “utilitarista” da realidade, direcionada para a produção e consumo permanentes e sublinhou alguns dos males: a globalização da economia, mas não da solidariedade; a transformação do mundo num enorme mercado sem tentar corrigir assimetrias e desigualdades; a ausência de cuidado no tratamento da casa comum, etc.
A homilia partiu de duas expressões de Jesus, apresentadas no Evangelho da liturgia de hoje: “Deixo-vos a paz” e “Dou-vos a minha paz” (Jo 14,27).
“Jesus deixa-nos a paz, isto é, mobiliza-nos para a paz”, precisou o cardeal madeirense.
D. José Tolentino Mendonça falou da paz como “tarefa” confiada a cada um, convidando os presentes a tirar “lições profundas” da pandemia, para relançar a vida com “resiliência e audácia profética”.
“Mais do que escapismo precisamos de resiliência e de audácia profética para relançar a vida comum a partir de alicerces justos, a partir da ideia de fraternidade, construindo um mundo onde o homem não seja lobo dos outros homens”, disse o cardeal.
“Estamos ansiosos para voltar a normalidade, mas só ilusoriamente podemos fazer a nova normalidade coincidir com um regresso exato à vida que tínhamos anteriormente, porque não seria normal que tudo fosse exatamente como dantes” referiu.
“Como é que a crise se pode tornar uma oportunidade para redescobrir coisas e valores de que precisamos?”, questionou, numa celebração com transmissão televisiva e digital. No Campo de São Francisco, onde foram colocados vários ecrãs de televisão, centenas de pessoas acompanharam a celebração, enfrentando a chuva.
“Tu podes ainda ir mais longe”, disse o cardeal, numa reflexão a partir da imagem do ‘Ecce Homo’ – que mostra Cristo com as mãos amarradas sobre o tronco, uma coroa de espinhos na cabeça e com a capa e o cetro que, segundo os Evangelhos, os soldados romanos lhe deram depois de o flagelarem.
“A primeira paz nasce do respeito pelo outro, brota da concertação, progride no diálogo e na tolerância, cimenta-se nos acordos de interajuda, instaura-se na gestação de pequenos e grandes equilíbrios. Isso é já extraordinário” afirmou o cardeal, mas hoje “pede-nos para irmos mais longe”.
“É verdade. Já fazemos alguma coisa, mas não sempre. Já damos muito de nós próprios, mas ainda não nos damos por inteiro e sem reservas. Já vivemos dimensões do Evangelho, mas continuamos longe de outras. Carregamos Jesus num trono, e isso é belo, mas Ele ainda não reina no nosso coração”, enfatizou.
“A paz de Jesus é uma paz que nasce do amor. Que nasce dessa radical oferta de si, desse amor oblativo, dessa forma de santidade que é deixarmo-nos contagiar, moldar, encharcar, configurar e inspirar pelo amor”, afirmou.
“Podemos ser pessoas corretas, e isso é bom. Podemos ser pessoas de bem, e isso já é tanto. Mas aos olhos de Jesus ainda é insuficiente”, disse.
A partir das várias jóias que adornam a Imagem, sobretudo nestes dias de festa, o cardeal madeirense pediu aos fieis que se concentrassem não nos adornos mas na verdadeira nudez, do amor, da simplicidade e da humildade, convidando toda a Igreja a ser “inclusiva, esperando por todos”, num verdadeiro caminho sinodal.
“Caminhemos juntos. Tornemo-nos uma Igreja mais próxima do Evangelho, uma Igreja que se faz serviço incondicional de amor, uma Igreja inclusiva, uma Igreja em saída da autorreferencialidade e que vai ao encontro não só daqueles que já acreditam, daqueles que fazem parte do rebanho, mas anuncie Cristo nas periferias existenciais, sociais e culturais, aceitando ser esse hospital de campanha que ajuda a reconstruir a humanidade ferida”, afirmou destacando a comunhão entre leigos e presbíteros e a exigência de uma Igreja animada pela Palavra de Deus, pela vitalidade dos sacramentos, pela paixão ardente da caridade, pela beleza da oração que nos faz sentir moradas de Deus”, concluiu.
O presidente da celebração comentou, ainda, o tempo de espera por um novo bispo diocesano .
“Este é um caminho belo que estais a fazer mesmo na sua ansiedade mas é o tempo do Advento, em que se vive na espera e esperar é já participar” disse.
“Confiemos na sabedoria do tempo, da escuta, de olhos postos no futuro, vendo como a Igreja dos Açores pode ser, florindo no futuro e ir com os grandes desafios que este século nos coloca”.
O cardeal agradeceu também “o triplo convite do Santuário, do querido padre Adriano Borges, e dizer que de facto os micaelenses quiseram esperar mas no meu coração mantive-me fiel a este desejo de vir até aqui celebrar esta fé convosco e aprender de vós a beleza de uma fé muito inteira e viva, que em Cristo tem a sua razão de ser. Parto com o meu coração confirmado pelo testemunho da vossa fé”, disse.
“Como ilhéu percebo muito bem a alma do povo açoriano, sinto-me um irmão muito próximo e sei o que significam estas festas para os daqui e para aqueles que são a maior parte de nós imigrados nas sete partidas do mundo. Parabéns a todos, por aquilo que fazem e aquilo que são. E lembrem-se jesus só nos pede coisas grandes!”.
No início da Eucaristia, falando aos romeiros, D. José Tolentino Mendonça, deixou votos de que, todos juntos, possam dar vida a “uma Igreja que caminha”.
“Também eu, vindo de Roma, desejei ser um de vós”, confessou.
Reitor do Santuário “profundamente agradecido”
O cónego Adriano Borges, reitor do Santuário, saudou a possibilidade de voltar a celebrar estas festas com a presença dos peregrinos e as manifestações públicas de devoção, após dois anos de limitações impostas pela pandemia de Covid-19.
“Este ano temos muitas razões para dar graças”, referiu agradecendo ao Cardeal “a forma que nos permite a chegar a Deus”
“As suas palavras, o seu sorriso e o seu olhar são a transparência da bondade do seu coração”, disse.
Administrador Diocesano agradece e deixa pedidos
No final da Missa, o cónego Hélder Fonseca Mendes, administrador diocesano, agradeceu o “testemunho de fé” do cardeal Tolentino Mendonça.
“Estamos muito gratos pela sua presença, a sua disponibilidade”, acrescentou, deixando três intenções: que interceda pelo desfecho dos processos de canonização de alguns açorianos como a madre Teresa da Anunciada, promotora deste culto ou do patrono da diocese o Beato João Baptista Machado; que ajude na escolha rápida de um novo bispo e que disponibilize o acesso às fontes do vaticano para que se escreva a história dos Açores, nos 500 anos da sua fundação, que se assinalam em 2034.
Esta celebração eucarística é um dos pontos altos da festa do Senhor Santo Cristo, cuja imagem vai percorrer esta tarde as ruas da cidade de Ponta Delgada, ao longo de várias horas, numa tradição secular na região, se a meteorologia o permitir.
O percurso passa pelos antigos conventos da cidade e algumas igrejas paroquiais, percorrendo ruas cobertas de tapetes de flores; em 2022, após dois anos de limitações por causa da pandemia de Covid-19, a imagem do Senhor Santo Cristo sai à rua com uma capa oferecida por um casal natural da Ribeira Grande, que vive nos Estados Unidos da América.
As Festas do Senhor Santo Cristo mobilizam milhares de pessoas, entre micaelenses, emigrantes e devotos do resto da região e do país.