Pelo padre José Júlio Rocha
Marie-Rose é filha ilegítima de Aristides de Sousa Mendes. Isto de chamar ilegítimo a um filho é mais uma daquelas palhaçadas que não fazem sentido, porque “ilegítimo” é quase o mesmo que ilegal, e não há filhos ilegais: há filhos e pronto. Mas o facto é que, aos 53 anos, casado com a prima Maria Angelina, e depois de 14 filhos, Aristides ainda teve tempo para um caso extraconjugal com Andrée Cibial, francesa de Limoges, 20 anos mais nova do que ele. O caso foi tido tão em segredo que só aos dez anos Marie-Rose conhece o pai. Isto por volta do ano 50 do século passado. Marie-Rose não conhecia quase nada do passado do pai. Só em 1966, doze anos depois da morte de Aristides, Marie-Rose recebe uma notícia especial: uma amiga dela tinha lido, na edição da “Reader’s Digest”, a referência a um tal Aristides de Sousa Mendes, que teria salvado trinta mil vidas humanas. Marie-Rose ficou pedrada. Nunca tinha ouvido falar da gesta do seu pai. O resto da sua vida foi dedicada ao conhecimento e divulgação do heroísmo do cônsul. Essa edição da “Reader’s Digest” chegou a Portugal. Anunciava que Aristides de Sousa Mendes fora considerado “Justo entre as Nações” pelo Yad Vashem, em Jerusalém. A revista foi logo retirada das bancas e abafada: era necessário não recordar o homem que desafiou o Regime salazarista. Envergonha-me o silêncio em Portugal à volta de um dos vultos mais notáveis da nossa História, não abaixo de nenhuma das figuras mais emblemáticas.
Há alguns meses a esta parte, tive a oportunidade de escrever uma crónica sobre este herói português. Agora sinto-me impelido a reescrevê-la, em moldes diferentes, após a colocação de uma placa evocativa de Aristides no Panteão Nacional.
Aristides de Sousa Mendes era profundamente religioso, católico convicto, de famílias conservadoras e com pergaminhos, génio de inteligência, homem ideal para exercer diplomacia durante o Estado Novo. No outro artigo referi que ele foi incumbido, pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros para, em 1933, de levar a Irmã Lúcia para Tui, uma vez que era cônsul em Vigo. Uma viagem sumamente atribulada. Um carro robusto, com ele, a mulher, onze filhos e a Irmã Lúcia lá dentro. Tiveram dois acidentes sem consequências nenhumas e, um dia depois de ter deixado Lúcia em Tui, a então filha mais nova, Teresinha, que sofria de um tumor numa perna que a deixava desfigurada e doente havia três meses, sem que os médicos conseguissem fazer nada, teve cura imediata. Aristides considerou sempre um milagre de Nossa Senhora.
É este espírito profundamente cristão e humano que vai fazer de Aristides de Sousa Mendes um herói pouco comparável em Portugal.
A vida de Aristides dá uma volta a partir de 11 de Novembro de 1939, quando o Ministério dos Negócios Estrangeiros de Portugal emite a “Circular 14”. Esse documento proibia às embaixadas e consulados portugueses de emitirem vistos de ingresso em Portugal a russos, apátridas e judeus, entre outros.
A saga de Aristides de Sousa Mendes começa em Maio de 1940, quando ele falsifica os primeiros documentos. Estamos na altura da invasão alemã da França e da maior movimentação de refugiados da História dentro da Europa: cerca de dez milhões de pessoas rumam a sul, à procura de fugir ao terror nazi. Nos primeiros treze dias de Junho, Aristides emite algumas dezenas de vistos, num grave delito contra as leis do seu País, o que lhe podia valer a destituição do cargo ou mesmo a prisão. Mas são milhares os seres humanos que se apinham durante dias à porta do consulado português, cujo inquilino já detinha a incómoda fama de ser um homem bom. Tudo se torna demasiado perigoso e o nosso herói, a 13 de Junho, fecha-se no quarto durante três dias, sem sair de lá, com um esgotamento nervoso.
É a 17 de Junho que o nosso herói decide agir. Depois de conhecer o rabino Jacob Kruger, que lhe pede vistos não só para si mas para o seu povo, Aristides de Sousa Mendes emite a famosa frase inspirada pelo seu profundo cristianismo: “Se há que desobedecer, prefiro que seja a uma ordem dos homens do que a uma ordem de Deus.” É por essa altura que ele escreve: “São todos seres humanos. E a sua posição social, a sua religião, a sua cor são-me totalmente indiferentes.” Juntamente com Kruger, cria uma linha de montagem para emitir indiscriminadamente vistos a todos aqueles que lhe pedem. A empreitada descomunal vê-se nas assinaturas do cônsul, que começam por ser “Aristides de Sousa Mendes”, passando para “Aristides Mendes” e terminando, nos últimos vistos, apenas com um “Mendes” arrastado. Foram três dias e três noites sem dormir. Ao todo, cerca de trinta mil vidas, vinte vezes mais do que Oskar Schindler.
Inexoravelmente, Aristides de Sousa Mendes acaba na desgraça por ordem de Salazar. Morre na miséria e a sua memória é proibida em Portugal. Mesmo depois do 25 de Abril a sua importância é pouco relevante: o facto de ser um católico e colaborador do regime em nada ajudava, numa altura em que os heróis eram os revolucionários de esquerda.
A última homenagem ao cônsul de Bordéus foi a colocação de uma placa em sua memória no Panteão Nacional, onde já figuram personagens bem mais recentes como Amália ou Eusébio. É muito pouco. A sua memória deve ser celebrada com a intensidade de um herói único e irrepetível.
A 17 de Junho de 2020, o Papa Francisco afirmou: “Celebra-se hoje o ‘Dia da Consciência’, inspirado no testemunho do diplomata português Aristides de Sousa Mendes, que, há 80 anos, decidiu seguir a voz da consciência e salvar a vida de milhares de judeus e outros perseguidos.”
A decisão parlamentar de colocar a memória do cônsul de Bordéus no Panteão foi curiosa: a iniciativa partiu de Joacine Moreira, nascida em Bissau. A votação quase atingiu a unanimidade, à exceção de um só deputado, que se absteve: André Ventura.
Lógico.