Seis cigarros de conversa

Pelo padre José Júlio Rocha

Os nossos cafés estão cheios de filósofos que, como na letra da Ala dos Namorados, entre um cigarro e outro lá vão cravando a bica ao melhor dos seus ouvintes. Daqueles que fumam os longos e pensativos cigarros de Queiroz e para quem, como para Pessoa, bela é a vida, melhor o vinho.

Gosto sobretudo daquelas gerações perdidas, que passaram ao lado de uma bela carreira de sábios ou doutos, às vezes bastante ao lado, talentos desperdiçados por preguiça ou circunstâncias várias, constantemente azedos com o destino, mas com a sabedoria perspicaz de quem nunca deixou de ser curioso, de ver os canais da “National Geographic” ou os velhos livros que ensinam os pilares da sabedoria.

Na tarde daquele dia, o último da semana, José da Canada, alto e magricela, olho azul e rosto enxuto, dobrava os seus sessenta e tal anos sobre a mesa do café, sempre onde se pode fumar, porque não dispensa, manhã fora ou tarde dentro, um café e um cheirinho, ou dois ou três cheirinhos, misturados com meia dúzia de cigarros, pernas sempre cruzadas, cotovelo direito sempre apoiado no tampo escorregadio da mesa.

Não falha a missa de sábado na terra onde vive, e um boa dose dos temas que escalpeliza tem a ver com a religião, curioso da Bíblia como é, atento aos sermões dos padres, devoto incondicional do Espírito Santo, e não de todo distraído de algumas questões teológicas.

Foi ele que me ofereceu o café. Queria falar. E eu, que, por inerência de cargo, passo a vida a dar sermões, preparei-me para ouvir o dele, já que é dever dos padres, mestres em dar sermões, ouvir os sermões dos outros, troca justa, ao menos fora do âmbito do espaço litúrgico.

O sermão do José resumia-se à filha mais velha e a um desgosto de há catorze anos que ainda trazia as suas mazelas. A Luísa era uma boa pequena, bem ensinada e ninguém tinha nada a apontar a ela. Cantava no Grupo Coral e tinha sido catequista desde o crisma até ao divórcio de um casamento que durou pouco mais de cinco anos. Luísa deixou o marido e regressou à casa do pai com um filho nos braços. Falou-se.

“Mas uma coisa é o que as pessoas dizem, outra é aquilo que se passou”, arremata o José. E o que é que se tinha passado? O marido nunca deixara de ser adolescente. Chegava tarde a casa, sempre em noitadas com amigos, sempre tocado pela bebida, sempre agressivo. Quando não tinha bebida, amuava, quando a tinha, brigava e batia na mulher e chegou a agredir o filho ainda quase bebé. “Não sei como é que ela aguentou aquele inferno cinco anos”. A freguesia concedeu o juízo da culpa à Luísa, que tinha deixado o homem, sem saber da missa a metade.

O cerne da questão estava a chegar: “quando ela foi à missa e se pôs na fila da comunhão, o padre disse-lhe que ela não podia tomar Nosso Senhor.” Segundo o José, a cena foi triste: a filha parada diante do padre, ainda perguntou porque é que não podia comungar, toda a gente das filas da frente a assistir, perturbadas, à cena da excomunhão, não se falou doutra coisa depois da missa. A filha chegara a casa destruída, inchada de lágrimas e acabou, depois disso tudo, por entrar numa depressão.

“Vocês têm muito poder, senhor padre”, assegurou o José da Canada apagando a quinta beata no cinzeiro encardido. “Não sabem o bem que fazem nem sabem o mal que podem fazer. Há quem diga que os padres é que dão cabo da religião. Eu não sou tolo, senhor padre. Sei bem como é que as coisas funcionam. Minha filha só se tinha separado. Não estava a viver com ninguém. Aquilo não foi só falta de misericórdia: foi falta de verdade.”

Não pude senão anuir, com a ressalva, irónica ou inútil, de que nem todos os padres dão cabo da religião. “O pai não abraçou o filho pródigo mesmo antes de ele pedir perdão?” foi a pergunta incisiva do José da Canada que me derrubou.

A filha nunca mais pôs os pés numa igreja, à exceção de casamentos e funerais. Deixei o José a dar cabo do último cigarro e saí com o sabor amargo de centenas de Luísas espalhadas por esta terra. Veio-me à ideia uma cifra reveladora: nos últimos trinta anos, mais de 40 mil fiéis abandonaram a prática litúrgica nestes Açores.

Evidentemente, a culpa não é só dos padres.

*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.

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