Pelo Pe. Teodoro Medeiros
Quantas vezes acontece? Lemos uma recensão a um filme, à espera de perceber que tipo de filme é, e ficamos na mesma ou pior. O articulista discorre sobre isto e sobre aquilo, sobre este ou aquele realizador, tece considerações doutas que pecam porque fora de contexto mas parecem assegurar-nos de que ele sabe tudo sobre cinema (pena que não nos indiquem que viu o filme em questão).
Lembra o velho adágio: “o senhor padre fala muito bem… tem palavras tão caras que não percebi nada do que ele disse!” Afinal cinema e religião são fenómenos sociologicamente semelhantes, até nas polémicas com que nos presenteiam. Basta pensar na separação entre cinema especializado e cinema popular: não será essa a grande questão religiosa deste pontificado?
A sétima arte conhece um autêntico cisma, quase doloroso, entre a arte pela arte e a que o público em geral consome e defende. De um lado estão os críticos de carreira, apostados na descoberta do último génio, do último grito da moda ou contra-moda; do outro estão os adolescentes de todas as idades, à espera dos últimos efeitos especiais feitos ao computador.
Estas reflexões são prementes ao comentar o filme italiano “Se Deus quiser”, exibido em Portugal neste ano de 2017. Trata-se da primeira realização do romano Edoardo Maria Falcone, mais habituado a escrever estórias do que a filmá-las. A crítica portuguesa institucional recebeu-o com um encolher de ombros e o esgar de desprezo com que se recebe um primo que fugiu de casa aos 14 anos para se dedicar à cocaína.
Mal impressionado, o abaixo-assinado farejou uma banhada monumental e recolheu ao seu abrigo. Até que foi aconselhado a vê-lo e o fez. A premissa é simples: pai ateu entra em crise quando o seu único filho rapaz decide tornar-se padre. Sendo uma comédia, os riscos são maiores: piadas imediatas sem gosto e um final feliz que estivesse para o previsível como o martelo pneumático está para o betão.
A surpresa é que a comédia o é sem nos puxar as orelhas a cada minuto: o humor é muitas vezes mordaz e inesperado; os personagens têm os pés no chão e nunca se transformam em caricaturas, na sua maioria; o arco narrativo dá espaço a emoção e a ironias de situação subtis, incluindo o desfecho. E sente-se uma leveza, uma distância em relação ao tema que afirma o olhar assumido como valioso.
À boa maneira das antigas comédias, há pequenas lições morais aqui e ali; um pequeno problema serve para apontar a outros mais graves que o protagonista não vê sequer; as pistas de investigação que alimentavam a dúvida têm uma explicação mais simples; existe o amor familiar e o seu poder para transformar as pessoas, sobretudo a partir das suas quedas.
Não se trata de uma revolução estética; não estamos perante uma reviravolta na forma de fazer cinema; a realização padece mesmo de um certo esquematismo, de um certo “fazer bem feitinho” à americana. Mas não o faz sem dar espaço a uma certa elegância; abre o tapete àquela sabedoria dos antigos, ao primado do conteúdo sobre o meio e àquela vivência (tão de cinema!) da emoção que inebria o arrazoar (e o torna mais humano).
Marco Giallini é o ator que corporiza o médico-cirurgião ateu: tratando-se de um ator muito conhecido em Itália, a escolha seria sempre acertada, do ponto de vista do marketing. A sua capacidade de fazer o mais difícil (faz-se de nervoso sem se enervar) é talvez o seu maior valor. O padre, por sua vez (Alessandro Gassman), é pouco verosímil ao início mas a intenção é mesmo essa. De resto, o ator não tem culpa de que a edição das imagens (de forma culpável) não o privilegie.
Alguns dos personagens secundários brilham, como a esposa de Tommaso ou mesmo o seu genro idiota. É justo reconhecer que figurantes como a empregada doméstica e a do hospital aproveitam muito bem o pouco tempo que lhes é dado. A elas pertencem alguns dos momentos mais engraçados do filme.
Em resumo: não vai destronar “Citizen Kane” do seu pedestal crítico mas também não é um filme filosófico, daqueles que acenam a nomes de gente importante e depois não fazem nada com eles. Sim, pode-se dizer “já vimos isto antes mas mais bem feito”, como garantem certas vozes especializadas.
“Se Deus quiser” parece prometer pouco e cumprir ainda menos, enquanto obra-prima de vanguarda (e porque há-de ser esse o único critério, alguém nos explica?). O certo é que evita os lugares comuns estafados e é melhor do que muita coisa que andamos a ver.