Saudações de Jerusalém: apontamentos de um diário de peregrino

Foto: Igreja Açores/JB
Pelo Cónego Jacinto Bento

Foi mesmo com muita alegria que fui homenageado pelo Ministério do Turismo de Israel, em 2016 e pelo Patriarcado Latino de Jerusalém, em 2017. As duas distinções ocorreram por causa dos serviços prestados: organização e acompanhamento de várias  peregrinações e fundação da Associação Amigos da Terra Santa dos Açores.

Embora tenha sido investido cónego pelo Bispo Marcuzzo, o Decreto de nomeação é do Mons. Pierbatista Pizzaballa. Foi uma feliz coincidência estar aqui na ocasião da sua eleição para Cardeal da Santa Igreja. Com esta última distinção fiquei também a fazer parte integrante da família da Igreja Mãe de Jerusalém, que muito me honra.

Neste sentido,  fui convidado (como já tinha sido em 2017, pelo Vigário Patriarcal em Amã) a passar as minhas férias no Patriarcado, onde vive o Patriarca com alguns bispos auxiliares, sacerdotes que coordenam os diferentes serviços pastorais, algumas religiosas e leigos que trabalham na Casa Patriarcal, contígua à Concatedral, na Cidade Velha de Jerusalém, dentro das muralhas.  Esta estada aqui foi para comemorar o 40° aniversário da minha Ordenação Sacerdotal e o 70° aniversário do meu nascimento. Dois números bíblicos que me dizem muito por significarem totalidade. Totalidade de doação da minha vida ao serviço de Deus e do Seu Povo.
No domingo, 9 de julho, depois de ter concelebrado com dois bispos auxiliares e mais dois sacerdotes, na Concatedral, quase de seguida fomos para o refeitório almoçar com sua Beatitude Pierbatista. A seguir ao almoço  alguns foram para a sala de estar
tomar café, onde eu me incluía, mas sem o Patriarca, em amena conversa sobre os Açores. Foi o Bispo Shomali (Vigário Geral) e o Chanceler que através do telemóvel descobriram que o Patriarca acabava de ser nomeado Cardeal, durante o “Angelus” . A notícia foi recebida com alegria esfuziante.
Saí para participar na procissão diária, orientada pelos franciscanos, dentro da Basílica do Santo Sepulcro, que numa hora percorre as catorze capelas relacionadas com a Paixão de Cristo, cantando em Latim os eventos do Mistério da Redenção, um momento que torna presente o que aconteceu há dois mil anos, hoje. Por ser domingo,  uma multidão imensa seguia a procissão.
A Terra Santa, não obstante tudo, tem um magnetismo que atrai multidões de todo o mundo, até da Igreja do silêncio da China. Estes peregrinos, de joelhos, pediram-me para eu os abençoar num dia que visitei o Cenáculo. É comovente!
Depois da procissão e antes da bênção do Santíssimo Sacramento, na Capela da Aparição do Anjo a Nossa Senhora, os franciscanos cantaram em Latim o “Te Deum Laudamus” em agradecimento pela nomeação do Cardeal Pierbatista Pizzaballa, Patriarca Latino de Jerusalém. Ele é franciscano italiano, mas passou quase toda a sua vida na Terra Santa, tendo sido Custódio por três vezes antes de ser nomeado Administrador Apostólico.
No regresso do Santo Sepulcro ao Patriarcado, entrei numa mercearia dum Greco-ortodoxo conhecido, a comprar água, onde, para meu espanto, o proprietário referiu com muita alegria a nomeação, dizendo mesmo que este Patriarca era completamente diferente dos outros, que andava nas ruas de Jerusalém Velha e falava com todos. Pouco depois, um finalista do Seminário de Beitjala referiu-me “he is a very humble man”.
Já no meu quarto, foram chamar-me para ir mais cedo para o jantar porque havia festa. Assim foi! Todo o “Staff”do Patriarcado (à excepção dos leigos que vivem fora e estavam em fim-de-semana) aguardava sua Beatitude com palmas, cânticos e segui-se uma saudação com espumante e depois o jantar.
Após a refeição, passámos à sala de estar  onde o eleito Cardeal referiu que tinha sido apanhado de surpresa porque o Papa Francisco nomeava os cardeais sem consulta prévia. Manteve sempre a sua naturalidade, simplicidade, bondade e humildade que tanto o caracterizam.
A minha leitura desta escolha, deve-se a quatro fatores:
1) qualidades pessoais, sobretudo capacidade de diálogo inter-religioso e ecuménico;
2) o Papa quis deixar bem claro que não obstante todas as tensões e escaladas que se vivem na Terra Santa e no Médio Oriente, não abandonou a causa palestiniana;
3) Sua Santidade quis honrar a Igreja Mãe de Jerusalém, reconhecendo o seu  mérito, pois foi aqui que o Verbo desceu do Céu e se fez um como nós, excepto no pecado, para nos salvar. Aqui cruza-se a História da Salvação com a Geografia da Salvação. Foi aqui que tudo começou, o “HIC” da salvação. Foi a Terra escolhida por Deus para se revelar aos homens;
4) O Romano Pontífice quis dizer que a Terra Santa merece reconhecimento, que os lugares santos são cada vez mais procurados pelos cristãos de todo o mundo e que a Peregrinação é uma nova forma de evangelização.
Nos últimos anos Roma tem feito muito por esta Terra sobretudo a partir de Pio IX (restabelecimento do Patriarcado Latino de Jerusalém) e com as visitas de Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI e Francisco começa-se a reconhecer que a Cidade Santa é o coração da cristandade.
O Patriarcado Latino de Jerusalém vai ser sempre muito difícil de governar:
1) Uma diocese para quatro países: Israel, Palestina, Chipre e Jordânia. Os bispos deslocam-se com passaportes diplomáticos e em viaturas com a bandeira do Vaticano como aconteceu, hoje mesmo, na visita a Jenin , para passar nos chekpoints, Palestina/Israel/,Palestina, onde fomos interceptados pelos militares.
2) Uma diocese com as três religiões abraâmicas a reivindicar a Cidade Santa.
3) Uma diocese com as mais diferentes denominações cristãs, com uma população de catorze mil cristãos, divididos em treze dioceses, para não falar dos diferentes ritos dentro do pequeno rebanho da Igreja Católica, das línguas e culturas.
Não nos escandalizemos porque quando o Livro dos Atos dos Apóstolos foi escrito, Jerusalém era assim.
Não mudou muito.
Deixámos, hoje, o Patriarcado Latino de Jerusalém, pelas 07:00, em direcção a Jenin a cidade mais a norte da Cisjordânia a 150 km de Jerusalém, pela autoestrada 99, com uma população de mais de 40 000 habitantes, sem contar o campo de refugiados.
A comitiva era constituída pelo Cardeal Pizzaballa, Bispo Shomali, P. Davide  Chanceler, P. Ibrahim, comunicação social, pelo administrador (leigo) por mim e mais 3 leigos da comunicação social  ao todo 9 pessoas numa comitiva de três viaturas com a Bandeira do Vaticano. Em Jenin, juntaram-se o  Vigário Patriarcal de Amã, o Bispo Jamal, mais três sacerdotes, e alguns leigos numa comitiva total de 30 pessoas.
A primeira visita que se fez foi à única paróquia católica existente naquela cidade com apenas 150 fiéis. A Igreja de Cristo Redentor que foi parcialmente destruída, pelos ocupantes judeus, sem as janelas e com as paredes negras e a lâmpada do S. S. Sacramento apagada porque os danos deram cabo da eletricidade. O Pároco e alguns leigos fizeram um relato dos acontecimentos, bastante graves, mas foram danos colaterais. Esta paróquia fica nos arredores do campo de refugiados.
Segui-se uma recepção no Palácio do Governador, onde fomos recebidos pelo próprio governador da cidade.
Terminada esta visita entrámos no hospital da cidade a ver alguns dos mais de 100 feridos deste ataque. Foi comovente porque eram quase todos jovens do sexo masculino, embora também estivessem algumas senhoras.
Segui-se uma reunião, onde o diretor do hospital mencionou as necessidades mais prementes, sobretudo naquela situação: falta de espaço (os corredores estavam cheios de doentes), falta de material, falta de especialistas, falta de tudo.
A próxima visita, foi ao campo de refugiados, de Jenin com mais de 20 000 habitantes e que existe desde a guerra da independência, em 1948, na qual os judeus desinstalaram os palestinianos das suas casas e propriedades para estes irem viver para tendas, hoje existem edifícios, mas sem qualquer plano de urbanização (em toda a Terra Santa existem muitos campos de refugiados: 1 em Jerusalém, 3 em Belém, entre outros. Também os há na Jordânia, Síria e Líbano).
Do ponto de vista de Israel, o ataque ao Campo de Refugiados de Jenin foi para desinstalar as brigadas terroristas de Jenin que se encontravam instaladas no Campo.
A visita a este campo foi realmente muito triste e emocionante. Estava a receber-nos um professor da Universidade Americana em Jenin e mais um grupo de moradores que explicavam o que se tinha passado. Há medida que íamos avançando por entre ruas e ruelas, passando por casas com os habitantes no limiar da pobreza, com mães que mostravam filhos ainda com pensos em feridas provocadas pelo invasor, que se detivera lá 4 dias, só sairam quarta-feira passada.
Continuámos campo adentro, onde era bem visível o solo manchada de sangue das 13 vítimas e dos feridos, com as pobres casas destruídas, os carros carbonizados. Todas as pessoas tinham uma queixa a fazer ao Cardeal: um filho que morreu, uma criança que ficou ferida, um sniper que se pôs em lugar estratégico a atingir tudo e todos. Ainda houve tempo para ouvir o Íman duma das mesquitas.
Finalmente, fomos recebidos na Câmara municipal onde o Presidente também apresentou os seus pontos de vista.
Nesta visita a Jenin, três coisas me impressionaram muito:
1) O sofrimento dos palestinianos e dos cristãos (2%), nomeadamente o ataque gratuito (como muitos outros) dos judeus a este campo, causando tanta dor e sofrimento, injustamente, sem qualquer respeito pelos direitos humanos e contra todas as convenções internacionais.
2) O acolhimento que todos nos fizeram,  cristãos e muçulmanos (sujeitos à mesma sorte), desde os mais humildes, passando pela paróquia cristã, Governatorado, Hospital, Campo de refugiados, Íman e Camara Municipal. Todos nos receberam com muita alegria, bem expressa nos seus rostos, com sorrisos e saudações. Foram muito afáveis e ofereceram-nos do que tinham, café, água e refrigerantes muito apetecidos com este calor abrasador que se faz sentir, nesta Terra que é praticamente um deserto.
3) Sua Beatitude Eminentíssima, Cardeal Eleito Pierbatista Pizzaballa, Patriarca Latino de Jerusalém, tem uma grande capacidade de escuta e  interagiu com todos de todas as idades, sem fazer acepção de pessoas. Foi deixando uma palavra de conforto e esperança. Falou sempre com muita naturalidade e humildade. Basicamente,  disse às autoridades e povo humilde e simples o mesmo:
“Venho para estar próximo de vós, ser solidário convosco, em espírito de comunhão eclesial e de oração pela paz, dizer que aprecio a capacidade de resistência dos palestinianos e que se mantenham sempre abertos ao diálogo para chegarem a uma paz justa e duradoira”. Referiu também que “Jerusalém  e a Terra Santa são o centro do mundo e se não houver paz nesta Terra não  haverá paz no mundo”. Declarou que “vai usar todos os canais diplomáticos da Santa Sé ao seu dispor para apelar à comunidade internacional que se empenhe e intervenha rapidamente na defesa dos direitos do Povo Palestiniano para que a ordem e a legalidade sejam restabelecidas”.
De notar que este foi o primeiro serviço Pastoral do novo Cardeal. Chamar-lhe-ia de missão impossível, mas muito bem sucedida. Todos o saudaram pela sua nomeação – sinal que a notícia se espalhou rapidamente – deu para ver que é estimado e respeitado por todos e que tem um carisma especial para o diálogo inter-religioso, um dos mais difíceis. Não me admirava nada que ele fosse o próximo Prefeito para o Dicastério das Igrejas Orientais.
Para mim que já estive 37 vezes nesta Terra, nunca tivera uma experiência assim. Foi como ver o outro lado da moeda da Terra Santa. As peregrinações, para já são durante um espaço muito curto de tempo (uma semana) e não podem contemplar estas experiências.
Presenciei tudo isto em primeira pessoa, e muito mais, que fica por dizer. Muitas vezes emocionei-me com as narrativas de testemunhos oculares “in loco”, com o sofrimento de crianças, idosos  e doentes no meio de montões de ruínas e de lixo a céu aberto, na rua com este calor … São situações indescritíveis e indizíveis.
Esta experiência deixa uma marca grande na minha vida de padre, Pároco, de Diretor Diocesano da Mobilidade Humana e motiva-me a uma maior dedicação à “Associação Amigos da Terra Santa dos Açores”. A este propósito, o nosso Bispo disse-me que era a única associação que conhecia com o fim de ajudar os cristãos da Terra Santa.
Finalmente, gostaria de deixar aqui um forte apelo aos senhores bispos, padres e leigos das dioceses portuguesas que arranjem formas de ajudarem a Igreja Mãe de Jerusalém.
Jerusalém, 10 de julho de 2023
*O cónego Jacinto Bento é cónego do Santo Sepulcro e pároco de Sao Pedro de Angra. É o único guia português acreditado na Terra Santa
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