Pelo Pe. Teodoro Medeiros
Já aqui se falou de Marco Martins, embora sem o nomear. Foi quando se chamou aos cineastas resistentes de “refugiados”: título que lhes fica bem, já que são invasores. Não as invasões bárbaras que o cinema também já denunciou (a ignorância da História e dos valores que nos construíram): aqui trata-se de preencher espaços públicos e privados.
Públicas são as salas de cinema e os calendários das distribuidoras; privadas são as teceduras dos nossos pensamentos e dos nossos hábitos. Dito assim, até parece verdade (a atração irresistível dos esquemas simples!); mas estes “lugares”, sobretudo no segundo caso, seriam bem melhor compreendidos se postos sob a lente da Sociologia.
Que é como quem diz: andamos todos a fazer as mesmas coisas, embora convencidos da nossa própria “originalidade”. Eu gosto, eu detesto, talvez as duas expressões mais falsas do quotidiano: e, contra o Nobel Bob Dylan, muito se critica o que se não entende. Dylan poderia mesmo acrescentar que os gostos dependem da programação que se recebe em novo.
Alexandre o Grande, na campanha da Índia, pegou num livro e atirou-o ao rio por onde passavam os seus barcos. A seu lado, assistia atónito à cena precisamente o autor da obra, Aristóbulo de Cassandra, sem entender o que se passava: não tinha ele descrito garbosamente as façanhas do monarca?
Disse Alexandre: -“Também a ti o devia fazer, ó Aristóbulo, que matas elefantes com uma só flecha!” A fúria contra o escritor devia-se ao facto de ele ser um adulador: os seus relatos abusavam dos factos heróicos imaginários. O caso é contado por Luciano de Samosata, no seu saboroso “Como se deve escrever História”.
Tal atitude revelava a mesma “captatio benevolentiae” de que falam os latinos: algo que é escrito com o único propósito de granjear ao emissor os favores do visado no conto (esta semana, três pessoas me citaram a “captatio benevolentiae”; será mera coincidência, não estou aqui para adular ninguém). Para os historiadores sérios, essa prática era de condenar.
O que nos traz de volta a Martins: está ainda em projeção em Lisboa o seu recente filme “São Jorge”, uma história situada durante a recente crise económica e entrada da Troika em Portugal. Jorge é o personagem central, um lutador de boxe que precisa de pagar dívidas e sustentar o seu filho: é mesmo com frases sobre as sociedades que cobram dívidas que se inicia e conclui o filme.
Não que Jorge (Nuno Lopes) seja vítima das tais: ele torna-se sim empregado em uma delas. E é aqui que está a afirmação política do realizador, o olhar para baixo para contar a realidade em vez de se vergar aos gostos dos que ocupam o poder. Por isso mesmo é resistente, refugiado dos padrões estéticos que nos escravizam a todos nós.
Dito de outra maneira, o valor deste cinema está em romper o nosso círculo vicioso, a nós cidadãos adultos e autónomos (tão semelhante a autómatos): o seu valor político é precisamente esse, voltar à realidade para a poder mudar, apontar os holofotes a quem se queixa do RSI e não a um qualquer herói típico do cinema de denúncia.
Sei que não é preciso lembrá-lo mas cedo à tentação: a política nasceu como dimensão humana teórica, inclinada ao bem comum, bem antes de ser recortada em figuras coloridas… que as cores existam, é
só uma parte desse todo à volta do qual se coloca este filme. A política aqui, como se percebe, está em roubar espaço às nossas formatações, em pôr o cinema a pensar em vez de distrair.
A política é melhorar a vida, fazer algo a que se reconhece mérito na sua função social: Jorge é um herói, pai, pobre, angustiado, pressionado, desempregado… mas é também agressor, desesperado, criminoso, iludido, ferido. A câmara apanha-o sobretudo pelas costas; é uma figura que, apesar da pujança, se mostra como que dobrada e vencida, como se o mapa de Portugal inclinasse à frente em vez de atrás.
Ele luta pela companheira e pelo filho: sacrifica-se pelo que de melhor tem, não alimenta sonhos de grandeza. E assim por diante: esta figura é a imagem do país, não há como fugir daqui. E o filme apresenta as cores escuras e sofridas do coletivo. É essa a sua dimensão de bem comum; fazer-se voz do que não se ouve nem se vê (em vez de mandar comer pipoca).
Quando ressuscita, Jorge vê ao longe a Terra Prometida, o Brasil. A sua figura também se transforma: ele caminha mais seguro e até o ângulo sobre ele é mais direto. Desaparece a necessidade de se olhar ao espelho, sem conseguir ver mais do que desilusão e desespero (como algumas vezes acontece durante o decorrer da fita).
Em 1995, Matthieu Kassovitz filmou Vincent Cassel ao espelho: enquanto ele fala, a câmara aproxima-se e entra pelo vidro dentro, transpondo o limiar da realidade, habitando o espaço da alma do personagem. O efeito foi conseguido usando dois atores: estão frente a frente, imitando-se de forma simétrica. A câmara desloca-se detrás de um deles e aproxima-se do outro, a única forma de evitar ser captada pelo espelho (que de resto nem sequer existe).
Nuno Lopes assemelha-se bastante a Vincent Cassel, é verdade; mas a ligação maior entre as duas obras poderá não ser física ou técnica. É que Kassovitz dizia adeus ao cinema em celulóide e ao preto e branco, assim como Martins, esperemos nós, diz adeus à crise.
E não só à crise: também ao cinema da imagem que não sabe dizer mais do que diria noutro contexto qualquer.