Pelo padre José Júlio Rocha
Conta-se que Miguel Ângelo, o incomparável génio do renascimento, teve alguns dissabores ao pintar o “Juízo Final” na Capela Sistina. O enorme fresco, de 13 por 12 metros, ter-lhe-á custado quase os olhos da cara. A grande polémica aconteceu porque todas as figuras pintadas, à exceção de Maria, Mãe de Jesus, estavam nuas, como Deus as tinha posto ao mundo. O fresco tem centenas de figuras. Ora, todos aqueles nus e nuas numa igreja eram coisa por demais nefasta e pecaminosa, pelo que o cardeal Biagio di Cesena, escandalizado com tanta pornografia, fez uma campanha difamatória contra o artista, chegando ao ponto de denunciar ao Papa as atrocidades de Miguel Ângelo. Contra a sua vontade, bem contra ela, o pintor lá teve de cobrir as partes íntimas de quase todos os figurantes, mas acrescentou um pormenor interessante: colocou na barca de Caronte – o barqueiro que levava almas para o inferno – uma figura bem delineada, com umas orelhas de burro e uma serpente a abocanhar-lhe as partes íntimas, a caminho do inferno: era a cara chapada do cardeal Biagio di Cesena. Podemos observá-la no canto inferior direito do fresco.
Terceiros não têm o direito de corrigir uma obra de arte.
Aconteceu-me uma coisa de alguma forma semelhante aqui há mais de trinta anos, quando compus a letra de uma marcha das Sanjoaninas. Começava assim: “São João tem olhos verdes, branqueados de luar.” Mas como os figurantes iam vestidos de rosa e negro, decidiram trocar os olhos verdes por olhos negros. Não quis. Resistiram. Recusei. E, pela Rua da Sé abaixo, foi-se ouvindo que São João, afinal, para meu desespero, tinha olhos negros. E foi só uma palavra. Perguntem, por exemplo, aos arquitetos o que é que eles pensam quando o empreiteiro ou o dono da obra decidem mudar alguma coisa ao desenho original…
Roald Dahl, um escritor britânico que morreu em 1990, especializou-se em literatura infantil. Uma das suas obras, “Charlie e a Fábrica de Chocolate”, foi agora reeditada agora. Mas a editora, tendo em conta que o livro era para crianças, decidiu mudar algumas palavras e contextos, de modo a evitar que as crianças ficassem afetadas pelas palavras “grosseiras” do livro, isto é, decidiram-se por uma linguagem mais “inclusiva”. Uma das personagens passou de “gorda” para “enorme”, outra deixou de ser “feia” para ser “desagradável”, e assim por diante. Não! Os termos “gordo” e “feio” são muito violentos para os meninos de hoje.
Esta é apenas mais uma daquelas palhaçadas a que o abuso do politicamente correto nos levou. Há muitas outras, demasiadas, como aquela tentação que afetou alguns educadores italianos, que ponderaram tirar a “Divina Comédia” – escrita há 700 anos – do ensino, porque continha linguagem racista e misógina.
O que se está a fazer, de há anos a esta parte, é a criar uma geração anémica, sem coluna vertebral, sem capacidade de amadurecimento, que não suporta a frustração. Isto não é educar.
Lembro-me de uma mãe, que conheci algures há algum tempo e que cuidava neuroticamente do seu filho. Dava-lhe banho com água de marca, a 38 graus de temperatura, quase esterilizava a roupinha do menino, ele raramente saia à rua para não apanhar doenças, etc. Disse à mãe que, a primeira vez que a criança saísse á rua e tocasse na terra, morria de septicémia… é mais ou menos isso que acontece quando as crianças são superprotegidas das adversidades do mundo. Queremos dar-lhes todo o bem do mundo, mas confundimos o bem com aquilo que elas querem. Abrimos-lhes avenidas de facilidade para que possam crescer sem obstáculos, frustrações, sofrimentos. Na escola, já não é a relação professor/aluno que é mais importante. É o aluno e pronto. O professor transformou-se em mais um instrumento para a valorização do aluno. Já não se perdem anos, já não se pode repreender um aluno, e esta divinização do aluno levou a que os professores chegassem ao estado em que se encontram: uma das profissões mais desgastantes e frustrantes que conhecemos. Ser professor, hoje, é um ato de heroísmo.
As crianças precisam, para um desenvolvimento harmónico, de serem desafiadas. E desafio aqui não é de brincar: é ensiná-las a superar obstáculos, a vencer frustrações, a enfrentar o sofrimento. Não é a tirar-lhes os obstáculos, as frustrações, os sofrimentos. O amadurecimento funciona como um músculo: só com esforço é que o músculo tonifica.
É que a vida não é um mar de rosas e educar é essencialmente preparar para a vida, ou não fosse esta uma verdade “a la Palice”. Não sei se já repararam, mas o número de depressões em crianças e adolescentes está a aumentar e não é pouco. Há, é certo, muitas formas de explicar esse fenómeno perturbante, mas de uma verdade não podemos fugir: estamos a facilitar demais a infância e, quando a vida começa a dar sopapos, cada sopapo é como se fosse um tiro.
Antigamente exagerava-se para um lado. Julgo que hoje se tende a exagerar para o outro lado. No meio está a virtude de todos os tempos: amor e responsabilização.
Aqui há uns dias encontrei um pai amigo. Disse-me que não batizava o filho porque a religião é uma questão íntima e o miúdo, quando crescesse, havia de escolher a sua religião ou, se não quisesse, religião nenhuma. Hoje, para ele, os filhos é que decidem o seu futuro. Mas o miúdo já é sócio do Benfica desde o primeiro ano de vida… ele há coisas.
*Este texto foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.