Os Romeiros de São Miguel este ano não vão para a estrada durante o período da Quaresma devido à pandemia. Os primeiros ranchos deveriam sair este sábado.
Pelo segundo ano consecutivo, cerca de 2500 homens ficam impedidos de cumprir uma das mais ancestrais tradições penitenciais da quaresma (cumprem 500 anos em 2022) em todo o país, em que grupos de homens percorrem a pé a maior ilha do arquipélago durante uma semana, do nascer ao por do sol, comendo e dormindo apenas daquilo que a caridade lhes dá. No ano passado, o confinamento em março obrigou ao cancelamento das saídas, na terceira semana da Quaresma, tendo ainda alguns grupos feito a volta a ilha.
“Estamos a falar de muito mais do que de uma caminhada física de sete dias; trata-se de toda a uma teologia dos afetos que fica adiada” referiu ao Igreja Açores João Carlos Leite.
“Desde há muitos anos que na Quaresma, em São Miguel, o Céu rasga-se e as bênçãos de Deus acontecem nas romarias” adianta ainda o dirigente Romeiro.
“Há toda uma envolvência da comunidade micaelense desde o intercâmbio de orações e rezas; inúmeras famílias a rezarem pelos romeiros e estes pelas famílias; o acolhimento nas paróquias; a entreajuda entre grupos de homens sem atender à profissão ao estatuto social… tudo isso fica diminuído”, refere ainda o responsável pela Associação Movimento de Romeiros de São Miguel.
“Mesmo os que não ficam nas paróquias e vão para salões, nomeadamente na Povoação e no Nordeste, recebem todo o apoio pois há grupos de senhoras que se organizam para providenciar tudo para os Romeiros” acrescenta ainda sublinhando esta “vivência única” na forma de ser e de dizer a Igreja na maior ilha do arquipélago.
“Tudo isto se perde” refere João Carlos Leite que também já cancelou o habitual retiro anual que se costuma realizar no terceiro fim de semana de Janeiro. Este ano estava marcado para o dia 24 e por coincidir com as eleições iria ser adiado para o dia 31, “o que nem chegou a acontecer”.
“Neste momento todas as nossas actividades estão suspensas; reunimos mensalmente na primeira segunda feira de cada mês de forma virtual e esperamos poder fazer as reuniões de maio e de junho, nas quais fazemos o balanço do ano que finda e projectamos as atividades para o ano pastoral seguinte, com as ouvidorias”, adiantou ainda o dirigente.
Atualmente a Associação tem em marcha um plano de resgate do património das romarias e este trabalho prossegue tendo em vista registar as Romarias Quaresmais de São Miguel no Património Cultural e Imaterial Nacional.
“Este trabalho tem de continuar. Os Romeiros são uma prática de vivência de Igreja única e para além do aspecto cultural há todo um legado que tem de ser deixado” refere.
“Para além da vivência religiosa há todo um humanismo que as romarias proporcionam através da amizade, da partilha, da ajuda ao irmão, do acolhimento social. Para alguns é uma semana em que sentem que são tratados com a dignidade que merecem”, destaca ainda.
Num ano dedicado à Familia Amoris laetitia, pelo Papa Francisco, este cancelamento torna-se ainda mais doloroso pois se há movimento dentro da diocese de Angra que mobiliza a família é este.
“O intercâmbio das famílias também fica cancelado” refere João Carlos Leite.
“Há famílias que quando os seus romeiros estão na rua não dormem; levantam-se de madrugada para levarem o pequeno almoço, para dizerem presente. Há teias de amizade entre famílias que se tecem no Movimento… isto está tão entranhado que não é fácil de ultrapassar. Não se trata só da caminhada física, que é cancelada; é o intercâmbio das famílias que fica adiado”, conclui alertando para as consequências futuras quer “na prática pelos mais jovens” quer ainda, na sensibilização de casais jovens para acolherem romeiros em sua casa.
As romarias quaresmais são uma das realidades mais vivas da tradição da religiosidade popular açoriana, quase a completar 500 anos (2022). Começam no primeiro sábado da quaresma, prolongando-se até à sexta feira santa, e durante oito dias, grupos de homens percorrem a ilha de São Miguel (na Terceira são apenas cinco dias), sempre a pé, do nascer ao por do sol, rezando em busca do perdão e da redenção.
Unidos pela fé, agarrados a um terço e a um bordão, percorrem no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio, todos os “templos” de pedra dedicados ao culto mariano.
Os ranchos de romeiros, que agora também já existem na ilha Terceira e na Graciosa, bem como no Canadá e nos Estados Unidos, remontam a 1522 e 1563, data de grandes erupções vulcânicas e tremores de terra que destruíram Vila Franca do Campo e Ribeira Grande, respetivamente.
Os romeiros são verdadeiros peregrinos penitentes que através da caminhada procuram a conversão pessoal e espiritual.
Os ranchos são compostos apenas por homens, embora já existam grupos de mulheres que se organizam da mesma forma, nomeadamente em São Miguel e na ilha Terceira.
O Movimento de Romeiros de São Miguel tem feito uma aposta na formação espiritual destes peregrinos estimulando-os a um verdadeiro compromisso com a vida comunitária ao longo do ano.
Os Romeiros de São Miguel já possuem uma Casa, na Lagoa, onde fazem algumas das suas reuniões diretivas e promovem o espólio museológico das romarias.