Por Carmo Rodeia
Um dos livros que me fascinou na infância, lido depois de ter visto a adaptação para televisão, no tempo em que havia só a RTP, foi Retalhos da Vida de um Médico, escrito em 1949 por Fernando Namora. Trata-se de um conjunto de crónicas fundamentalmente acerca da vivência de Fernando Namora na sua atividade profissional enquanto médico de província, mas é também uma visão da realidade social portuguesa em meados do século XX.
Retalhos da Vida de Um Médico foi adaptado ao cinema por Artur Ramos, com uma magnifica música de Ary dos Santos, que fazia o genérico da série televisiva, soberbamente interpretada pelo inconfundível Carlos do Carmo.
O jovem médico andava de aldeia em aldeia, como se fosse um novo e moderno João Semana, mítico personagem de Júlio Dinis. Tirara o curso de medicina por vontade da mãe e descobrira a vocação de acudir “às dores e ao sofrimento alheios”.
Esta manhã, quando vinha para o Santuário ouvi a música de Ary dos Santos na TSF e, de repente veio à memória a minha própria infância na companhia do meu pai, também ele médico de província, cuja convivência foi interrompida por um súbita doença, aquelas que nas notícias anunciamos como “doença prolongada”, que de longa nada teve e me o levou em pouco menos de seis meses.
Recordo-me bem da sua disponibilidade para os outros. Fosse a que horas fosse, por montes e caminhos esburacados sem o asfalto moderno e longe das auto-estradas que nos levam rapidamente a todo o lado, mas nos afastam dos centros das vilas e das aldeias, despovoando-as de turistas e do ganha pão de tantos pequenos negócios… Lá ia ele acompanhado sempre pela minha mãe. Iam os dois, como se fossem só um. Ela, atenta e perspicaz, ia sinalizando as prioridades, como que fazendo de secretária e de enfermeira ao mesmo tempo, embora a profissão fosse outra. Acho que verdadeiramente o melhor papel dela era o de companheira. De vida, de caminho e de valores, e lá iam os dois acudir às dores de todos os que à porta batiam. Em Beringel ou em Beja não havia casa nem monte que não conhecesse o Dr. Rodeia, que ajudou a nascer pelo menos três gerações diferentes. Hoje tem uma rua em Beringel com o seu nome, a rua do consultório e da casa onde todos nascemos, os três filhos, uma prova desportiva e uma bolsa de estudo para estudantes de medicina. Filhos e netos seguiram a sua vocação.
Quando hoje olho para as reivindicações salariais e de trabalho dos profissionais de saúde, justas e certamente muito oportunas, porque a vida é outra dir-me-ão; para as greves, com certeza fundamentadas, que deixam milhares sem consulta e sem acesso a cuidados de saúde; quando eu própria me desloco ao centro de saúde a onde estou inscrita há sete anos mas ainda não tive a sorte de ser contemplada com um médico de família e tenho de esperar na fila, como tantas outras pessoas, por uma consulta dita de oportunidade que pode chegar apenas quando já não estiver doente, na verdade lembro-me do meu pai… Nunca precisou de ganhar milhares para fazer o bem; estava sempre disponível para cuidar; não tinha senhas nem número de pessoas certo para atender num dia; nem reivindicava questões de carreira para cuidar da saúde, tratar e acudir a quem precisava dos seus cuidados médicos. E tinha tempo para a a família, para os amigos, para as ações sociais em que estava sempre envolvido, para os hobbies, caçar e ver o seu Benfica, por quem quase que dava a vida, como os três netos deste lado hoje o fazem.
Pergunto-me o que é que mudou nesta disponibilidade do ser humano? Mudou tudo, lembrar-me-ão. Lutar por mais e melhores condições de vida é um direito e um dever. Mas quando elas estão acessíveis a todos e não põem em causa o bem estar e a vida dos outros. Incomoda-me ir a ao meu centro de saúde e ver às sete da manhã uma fila interminável de pessoas que mendigam por uma simples consulta médica a que têm direito pela Constituição mas a quem esse direito é negado pela inacessibilidade a uma senha, porque a quota do dia já foi ultrapassada. Choca-me que descontando rios de dinheiro em impostos ainda tenha que fazer um seguro de saúde para não perder a vida e ser consultada a tempo e horas. E poderia continuar a desfiar um rosário de lamentações que estão na origem do choque que às vezes a vida sofrida de tantos me provoca, ciente de que “Cada história é um retalho cortado no coração| De um homem que no trabalho| reparte a vida e o pão| As vidas que defendeste, e o pão que repartiste, São lágrimas que tu bebeste dos olhos de um povo triste ” como diz o refrão da canção de Ary.
Se o meu pai fosse vivo diria: não te apoquentes com isso, filha. Não te esqueças tu de fazer o que deves fazer. É em ti que começa a mudança. Não esperes dos outros, faz tu. Foi isso que me disse pouco antes de morrer, quando com a sua racionalidade conseguiu despedir-se em separado de cada um dos filhos, da mulher e dos que lhe eram mais próximos. Às vezes gostava de ter a sua força e a sua resiliência. O meu pai morreu há 47 anos…