Por Carmo Rodeia
Julgo que será mais ou menos consensual que quem é crente acredita desde cedo que o Senhor sempre nos precede. Isso é particularmente visível quando passamos por um momento de dor, de sofrimento plasmado na nossa própria cruz. Nessa altura percebemos que Ele já lá esteve, porque na sua paixão tomou sobre si todos os nossos sofrimentos. Mas, no momento atual tenho muitas discussões com Jesus e chego mesmo a exaltar-me com ele, rezando as minhas lágrimas, pedindo-lhe a força do seu amor para seguir em frente.
Não me atrevo sequer a fazer a mesma pergunta que Ele fez ao Pai, na hora da sua agonia, mas não deixo de O interrogar sobre a razão e a necessidade de tanto sofrimento no fim da vida. E são tantas as formas de sofrimento na doença, sobretudo na doença…
Já vivi situações de grande sofrimento. Umas porventura sentidas de forma mais consciente pelo passar da idade; outras tão marcantes que só a frescura e a inconsciência própria da idade terão ajudado a mitigar o sofrimento. Entre elas está a morte do meu pai, com apenas sete anos e contra a qual ainda hoje me insurjo, perguntando tantas vezes porquê. Foi uma morte repentina de alguém novo de mais, que como todos os pais que partem deixam um vazio inconsolável. Lembro-me de tantas coisas dele, do amor que nos unia, acrescentado pelo facto de ser a menina dos seus olhos, a menina que ele tanto desejava apesar do amor aos dois filhos com quem sempre teve a oportunidade de partilhar os seus gostos: o benfica, a caça, a pesca, o desporto, os passeios ao ar livre, a caça submarina, a medicina e a saúde em geral, com o cuidado do outro sempre na primeira linha. Mas, não me lembro do timbre da sua voz, o que para alguém que é jornalista de televisão e de rádio e que usa a voz como forma de expressão, constitui um desconforto.
Era um homem sério, cheio de ternura mas com dificuldades em ser ternurento. Muito racional e muito culto, com uma espiritualidade própria mas sem ser religioso, embora tivesse optado por dar uma educação cristã aos filhos, a mim e aos meus irmãos. Tinha sempre solução para tudo, ao contrário da minha mãe, mais nova, mais impulsiva e intuitiva e sobretudo muito mais amorosa. Faziam um belo par nos seus 17 anos de diferença de idade. Não me canso de afirmar que guardo deles, enquanto casal, a memória de um par perfeito, uma ideia talvez efabulada pelas declarações de amor expressas pela minha mãe ao meu pai depois dele morrer e que foram alimentando os dias da família até ela ser dominada pela doença. Infelizmente, partiu cedo demais.
O sofrimento da minha mãe foi partilhado, mas julgo que ela encontrou forças para o superar no afecto que tinha pelo meu pai e por todos os que a rodeavam a que eu nem sempre correspondi, por ser, como ela costumava dizer, “muito sacudida, tal e qual o senhor seu pai”.
Graça a Deus ainda a tenho. Não sei por quanto tempo tal é o grau de definhamento a que a doença, esse Alzheimer maldito, a tem conduzido. Tem demorado tempo a processar que o equilíbrio psíquico que ela sempre conseguiu encontrar tenha ficado para trás e que a doença tenha tomado conta dela.
É verdade: levamos tempo a perceber o óbvio. Gastamo-nos – e bem- prestando atenção à toma dos medicamentos, preparando as refeições, ajudando a caminhar , estimulando memórias com conversas sobre a família, os filhos, os netos, os amigos, recordando cenas felizes de um passado que se esqueceu porque a memória- imediata ou remota- já não existe, roubando ao céu o azul dos dias de verão para encher de sol o pouco que resta da expressão de afetos.
Mas, será que temos capacidade de entender o sofrimento, escutando e interpretando-o?
Ontem, depois da visita à minha mãe, que definha a cada dia que passa, metade da metade que foi depois de ter perdido o marido e o pai no espaço de ano e meio, dei comigo a perguntar-me, submersa numa revolta indizível, sobre se o fim tem de ser sempre assim: Como posso eu entender toda aquela fragilidade e focar-me na minha mãe em vez de me focar na doença? Como posso impedir que o meu coração se perca na amargura e no desânimo e que a doença me impeça de ver a vida como um dom de Deus?
É uma luta, acredita, mãe! Todos os dias me colocas à prova. Sem saberes, todos os dias testas a minha fé. Também por isso, estou grata, mãe.