D. Francisco Senra Coelho, Bispo auxiliar de Braga, preside às festas do Senhor Santo Cristo
Em entrevista ao Sítio Igreja Açores revela como conheceu primeiro os açorianos- “um povo pascal”- e só depois os Açores; fala da fé que brota “de um encontro verdadeiro com Deus” tão ao jeito dos ilhéus; da esperança “num Cristo ressuscitado que nos inunda de amor”; da religiosidade popular e dos desafios que se colocam à Igreja. Uma Igreja “renovada” assente em pilares sólidos que privilegiará “a profundidade à superficialidade”.
Sítio Igreja Açores- Como é que recebeu este convite e com que espirito vem de novo aos Açores, onde já conhece praticamente todas as ilhas, e agora vem presidir às maiores festividades religiosas do arquipélago?
D. Francisco Senra Coelho- Sim; só não conheço Santa Maria, onde vou estar esta sexta feira e o Corvo. A primeira vez que vim aos Açores foi para participar no primeiro congresso de santuários Marianos que se realizou no Santuário de Nossa Senhora da Conceição, em Angra do Heroísmo. Por isso, o meu primeiro contacto foi com os açorianos e só depois com os Açores. Estive e conheci inúmeros açorianos que participaram em Cursilhos de Cristandade na costa leste dos Estados Unidos e na Califórnia, onde fiz uma experiência muito interessante com os nossos portugueses.
Sítio Igreja Açores- Contactou com inúmeros açorianos…
D. Francisco Senra Coelho- Imensos…e foi aí que fui contactando e conhecendo os açorianos sem conhecer os Açores. Só vim ao arquipélago há dez anos e aí conheci a Terceira e São Miguel. Desde então vim muitas vezes, sempre ao serviço do Movimento dos Cursilhos de Cristandade.
Sítio Igreja Açores- Que expetativa tem em relação a esta festa, que vive pela primeira vez?
D. Francisco Senra Coelho- A primeira é a de me encontrar com um povo verdadeiramente crente. Eu quero sentir o contágio da fé do povo açoriano e quero respirar e viver a experiência da osmose da cultura deste povo com a minha própria experiência espiritual. Vivemos no tempo pascal, estamos a celebrar Jesus Cristo ressuscitado que apareceu e mostrava a marca dos cravos aos discípulos, e neste encontro com o Ecce Homo percebemos que todo aquele sofrimento e toda aquela paixão foram símbolos de um grande amor, de Alguém que deu a vida por nós, que nos ama antes de nós o amarmos. Por isso olhamos para esta imagem com um olhar Pascal. Aliás, sinto que este povo é totalmente pascal.
Sítio Igreja Açores- Que mensagem vai, então, partilhar com os açorianos?
D. Francisco Senra Coelho- A mensagem que trago no coração e que vem no seguimento da que nos foi proposta pela diocese de Angra: a Fé como caminho de salvação. Quando aprofundamos a palavra salvação ela significa uma experiência já nesta vida do que é sentir uma alegria e uma paz interiores, resultantes de uma verdadeira experiência com Deus. No fundo, ser uma pessoa salva é ser uma pessoa que mergulhou na paixão, morte e ressurreição de Jesus Cristo. A salvação acontece, quando nos encontramos com Deus e somos tudo Nele e Ele é o nosso tudo. É esta salvação que dá sentido e que brota da fé que pretendo anunciar com uma esperança que é caridade e misericórdia. No fundo, hoje, todos nós precisamos muito de saber que a esperança acontece porque somos amados e não é fruto de um sucesso, de uma alegria passageira ou de uma atividade que nos preenche. E acontece porque somos amados por alguém que dá a vida por nós. Esta é a nossa esperança de uma vida com sentido. E a palavra esperança é fundamental nos dia de hoje para todos, incluindo os cristãos que vivem dias de perseguição, de medos e de desencontros. Este caminho de esperança a partir da fé, que nos faz pessoas salvas, compartilhando o ritmo desta diocese é a principal mensagem que gostaria de deixar.
Sítio Igreja Açores- Os açorianos são conhecidos pela sua fé, por terem uma fé inquebrantável. Tem esta noção?
D. Francisco Senra Coelho- A natureza é um livro aberto onde se encontra Deus, com relativa proximidade. Os homens da terra e do mar são buscadores de Deus. Os Açores são marcados por essa força de uma forma telúrica. Por isso, era expetável que o povo açoriano tivesse esta fé, ou melhor esta experiência profunda de Deus. Para além da experiência do risco e perigo que marca esta região.
A insegurança gera a busca de um absoluto, e necessariamente o desejo de olhar para dois infinitos- a terra e o mar- e é nestas duas grandezas que se faz um encontro com Deus. Por isso, vejo esta festa com um olhar de ternura, de amor e de misericórdia. Aqui vejo um Deus que ama e que dá a vida pelo homem. Não há maior prova de amor que essa. Ele amou até ao fim. O sofrimento, a insegurança, as dificuldades fazem com que os açorianos cruzem o seu olhar com o Dele e por isso é natural que os açorianos se revejam na sua história e numa história que é de amor. Esta devoção representa, por isso, o cruzamento de duas vidas: a vida do homem e a de Deus.
Sítio Igreja Açores- Estas festas têm como lema “A fé, caminho de salvação”. É esta a mensagem adequada para os dias de hoje?
D. Francisco Senra Coelho- Há dois símbolos que aparecem no principio do Cristianismo: a expressão da epigrafia da âncora e da bússola. A fé é as duas coisas: orienta, indica o sentido mas também nos dá a imagem do fundo do mar quando à superfície as coisas não estão bem. Esta experiência do amor é consoladora sobretudo quando temos um chão movediço.
Sítio Igreja Açores- Uma das criticas que se faz habitualmente é que temos uma fé muito ritualizada. Como podemos crescer na fé, na verdadeira fé, a tal que nos segura ao fundo mesmo quando as areias são movediças ou há tempestades?
D. Francisco Senra Coelho- O ritualismo é sempre um perigo para todas as religiões. Porque é a fixação em fórmulas daquilo que é o essencial da fé. Já a celebração é diferente. Quando celebramos estamos a viver algo que nos fez bem, que nos fez feliz. É assim na família: quando celebramos o nascimento de um filho, um pedido de casamento, o dia do casamento. A celebração está associada ao amor. Quando, por exemplo um casal já não celebra, significa que enterrou o amor. Daí a importância de uma vida interior, de um encontro com Deus, de uma peregrinação interior, entre a superficialidade e a profundidade do nosso ser. Eduardo Bonim, o iniciador dos Cursilhos, dizia que era mais fácil ir da terra à lua que da superficialidade à intimidade do homem. Esta intimidade é o santuário. Encontrarmos a realidade dentro de nós é muitas vezes doloroso.
Sítio Igreja Açores- Mas é o único caminho…
D. Francisco Senra Coelho- Sem dúvida. Não só é importante como decisivo fazermos este caminho. O tal, que Santo Agostinho quis para si e para os outros: que eu Te encontre e que eu me encontre. Depois de fazermos um filme da nossa vida há que fazer tudo para promovermos o encontro com Cristo. Ele é o modelo e quando nos encontramos com ele, nós que somos pecadores, é como repetir o encontro de Zaqueu, o encontro com a Samaritana, a parábola do Filho pródigo, essa é a marca da experiência de Deus que é a descoberta do nosso nada. Aí percebemos o amor de Deus, que é um amor eterno, que já nos conhecia antes de nós o conhecermos e a nossa vida deve ser um caminho para essa descoberta, para amarmos com o amor com que somos amados. E só assim nos damos aos outros. Por isso, este percurso interior é muito importante e tem de ser feito porque na vida encontramos muitas pessoas que têm vivência religiosa intensa mas sem experiência de Deus…
Sítio Igreja Açores- Esse é um risco: ouvimos a palavra sem a escutarmos e isso pode levar-nos a uma prática de repetição. Por exemplo a religiosidade popular…faz-se por tradição, porque sempre se fez mas vive-se aquele momento e mais nada…
D. Francisco Senra Coelho- Devemos distinguir dois aspetos: a fé atinge uma plena inserção e quando se incultura num povo a expressão dessa fé isso significa que se enraizou. A religiosidade popular é isto e passa a fazer parte da identidade do povo, a partir da qual o povo se define, inclusive na sua experiência religiosa.
Uma das minhas experiências como pastor é que as pessoas se revelam muito na sua fé a partir da religiosidade popular. Por exemplo nas peregrinações a Fátima tenho encontrado grandes conversões, grande experiências de encontro com Deus. O mesmo se passa em relação a Santiago de Compostela. Mais do que uma promessa muitas pessoas fazem estas peregrinações como um retiro. O mesmo acontece por exemplo em São Miguel, com os Romeiros. Não conheço em profundidade mas o que oiço dizer é que as romarias quaresmais são uma expressão muito forte desta conversão. O mesmo no que respeita ao Senhor Santo Cristo, na roda, na correspondência. Isto merece de nós hierarquia uma grande análise, profunda e séria, porque há pessoas que experimentam este encontro com Deus a partir desta religiosidade.
Sítio Igreja Açores- Então como é que se explica que a Igreja, a hierarquia bem entendido- tenha tanta dificuldade em lidar com fenómenos de religiosidade popular?
D. Francisco Senra Coelho- Há uma atitude nova depois do Concílio Vaticano II, sobretudo a partir de Paulo VI e depois com João Paulo II. A Religiosidade Popular é um ponto de partida. Uma coisa é a subjetividade do crente na sua relação com Deus a partir desta religiosidade; outra coisa são as componentes desta religiosidade popular, concretamente, a sua fidelidade ao Evangelho, a sua ortodoxia na fé ou então uma expressão cristianizada de uma vivência religiosa anteriormente pagã. Nós sabemos que a mentalidade evolui lentamente. A evangelização que aconteceu em Portugal parte de uma vivência pagã, herdeira do império Romano e de cultos pagãos, pré-cristãos, do tempo dos Lusitanos. Nem sempre atingiu dimensões profundas, foi mesmo uma espécie de maquilhagem ao rito pagão, uma espécie de batismo ligeiro sem catecumenado, colorindo-se cristãmente uma expressão pagã. Essa realidade precisa de ser evangelizada no sentido de se fazer crescer o evangelho e a expressão cristã da vida nessa vivência. São coisas que se colocam de uma maneira complementar e não antagónica. A pastoral atenta e cuidada proposta por Paulo VI, continuada por João Paulo II e agora reafirmada constantemente pelo Papa Francisco deve ser uma prioridade e vista sempre como um ponto de partida que deve ser acompanhado, podado, cuidado, fazendo-se uma revisão de vida mas nunca de uma maneira clericalizada.
Sítio Igreja Açores- Ou seja a religiosidade popular precisa de ser constantemente evangelizada mas não regulamentada…
D. Francisco Senra Coelho- Sim, tudo tem de passar por uma descoberta mutua, sob pena de se abrirem feridas. Temos que ter uma sensibilidade aprofundada para que esta religiosidade seja cada vez mais cristã. As feridas têm que pertencer ao passado e não ao presente.
Sítio Igreja Açores- Vivemos tempos diferentes. O Bispo de Angra acompanha o Papa Francisco repetindo sempre que já não vivemos em tempo de cristandade. De que forma podemos dar esperança a quem tem de fugir e deixar tudo para trás, só para sobreviver?
D. Francisco Senra Coelho- Quando olhamos para o Senhor Santo Cristo vemos que é um cristo sofrido, mas como vivemos no tempo pascal sabemos que Ele ressuscitou. Por isso, nós olhamos para o sofrimento da igreja com este olhar. Já diziam os antigos que sangue de mártir é semente de cristão… está algo para acontecer, um tempo novo. A paixão é sempre pronúncio de ressurreição. João Paulo II quis fazer um levantamento dos mártires do século XX para que no século XXI soubéssemos o que é a Primavera, que ela fosse possível. O Papa Francisco ao levar-nos pela mão até ao Evangelho, promovendo uma igreja de rosto lavado porque rejuvenescida no Evangelho, está a fazer essa igreja bela, esposa de cristo, que encanta o homem que a descobre e encontra.
Nós estamos a dar inicio a uma época nova. Agora, porventura, há de ser apenas uma semente que vai dar frutos, mas que há de ser sombra para que os homens, cansados da vida possam descansar nela e encontrar um abrigo. Eu acredito que se está a desenhar um tempo novo, de fecundidade para a igreja. Será uma igreja diferente com um rosto novo, purificado, que nasce do martírio e por isso de convicções muito profundas e os que permanecerem vão ser muito fortes porque só permanecerão aqueles que têm esta experiência de Deus. A hora é de convite à profundidade e não à superficialidade.