Por Carmo Rodeia
É quase um lugar comum dizer que vivemos numa sociedade parca em valores e, com muita dificuldade em distinguir o bem do mal.
Vem este lugar comum, e desprovido de qualquer pretenso moralismo, a propósito do último “negócio” conhecido de Cristiano Ronaldo. Depois de aparentemente ter encomendado a uma barriga de aluguer o primeiro filho, Ronaldo voltou às “compras” e desta vez trouxe dois. Não é o primeiro a fazê-lo e infelizmente não será o último.
O silêncio que caiu sobre a mais recente “aquisição” de Cristiano Ronaldo é tão ensurdecedor como inaceitável, porque estamos a falar de um acto que representa, a todos os níveis, um verdadeiro retrocesso civilizacional.
Ser pai ou ser mãe não é um direito natural. O que é um direito absoluto é que todas as crianças tenham uma mãe e um pai e que a sua dignidade seja respeitada desde que são concebidos até à morte. E transformar a maternidade ou a paternidade num negócio chega a ser aviltante.
Ronaldo, e tantos outros, uns conhecidos outros desconhecidos- sobretudo com muito dinheiro- foi ao mercado; terá escolhido a progenitora (tal qual como se escolhe uma marca que dê garantias); depois terá escolhido a clínica (assegurando-se de que a fábrica não falhava no acompanhamento da “produção e no acabamento final”) e terá pago a “factura” pelos “serviços e pelo bem transacionado”. Possivelmente só não trouxe talão de troca, também era só o que faltava!
A “compra” de Ronaldo deveria fazer soar campainhas, mas nada.
Ela levanta o problema das “barrigas de aluguer” ou “gestação de substituição” (mais técnico e menos perturbador para os puritanos da semântica) cuja legislação em Portugal se fez e se aprovou nas costas dos portugueses, “salvaguardando” claro a questão do negócio pois ninguém o pode fazer a troco de dinheiro.
Esta “engenharia social”, que legitima a coisificação das pessoas, seja da mulher seja do bébé, é inaceitável. É, no mínimo, lamentável que, num tempo em que tanto se fala de direitos humanos, se criem deliberadamente formas de exploração e de mercantilização sexual das mulheres e crianças, num claro retrocesso civilizacional.
Ninguém terá dúvidas em aceitar que esta prática instrumentaliza a mãe de substituição e trata o bebé como um objeto.
Há dois anos atrás os bispos católicos europeus pediram à União Europeia que legislasse nesta matéria e sensibilizasse os estados membros para a ilegalidade e imoralidade desta prática. Mas pelos vistos tiveram pouco sucesso.
Não se trata de uma posição conservadora. Bem pelo contrário. Conservadorismo seria apoiar o mesmo que aqueles que ao longo da história, e pelos vistos nos nossos dias, permitem a aprovação de legislação que perpetua a possibilidade dos mais ricos e poderosos comprarem o corpo dos mais pobres, sobretudo o das mulheres, e que as crianças sejam propriedade dos pais, coisas transacionáveis.
Conservadorismo seria , também, por outro lado, ignorar os avanços da ciência que provam a importância para o futuro de um bebé a ligação que estabelece com a mãe durante os nove meses que vive no seu ventre.
Conservadorismo é pensar que isto se faz a troco de dinheiro nenhum, quando todos falam dos valores em causa: 40 mil, 50 mil euros… e por aí fora, até certamente ao topo de gama, como deverá ter sido no caso em apreço.
Mesmo sabendo que, em sociedade, tudo o que fazemos e decidimos é marcado pela fragilidade da nossa condição humana, por muitas imperfeições e por muitos erros como este, não podemos continuar a fingir que nada se passou, que nada se passa. Não podemos fingir que não soubemos e que não nos indignámos. Nunca as palavras do poeta José Tolentino de Mendonça foram tão certeiras: “Precisamos de uma nova gramática para dizer a vida e valorizá-la”.