Pelo padre José Júlio Rocha
Morrer é a última coisa. Tudo o que, neste mundo cá de baixo, nos acontece, tudo o que fazemos e sonhamos passa-se antes da nossa morte. Esta é uma verdade tão “a la Palice” que nem nos detemos um momento a pensar o quão importante esta verdade é para as nossas vidas. “Não guardes nada para depois da morte” pode ser um pródigo lema de vida: faz tudo o que de bem podes fazer, não deixes restos de vida para depois, não adies. Há tantos casos de procrastinação da vida que, parece-me, são imensas as pessoas que deixaram mais da metade da vida para depois da morte, viveram apenas meia vida, não esgotaram todas as possibilidades, os talentos. Tantas vezes nos perguntamos se há vida depois da morte, tantas vezes nos esquecemos de viver antes dela.
A morte marcou 2022. Só em Portugal morreram cerca de 125 mil pessoas, o que dá uma média de doze mortes e meia por mil habitantes, um número ligeiramente elevado, diz quem sabe. Todos nós vimos partir alguém que nos dizia alguma coisa, amigo, familiar, conhecido, amado. A morte atinge-nos com a sua injustiça definitiva. Parte-se inexoravelmente, deixando quem vive e ama na impotência mais estranha perante o poder implacável de um partir para sempre.
Mas é a morte de pessoas de alguma forma imortais que mais marcou o ano passado. Gente do espetáculo, da arte, da guerra, da política, do desporto, da religião, gente que se tornou parte do nosso mundo, gente que entrava com regularidade pelos nossos ecrãs adentro, gente que, bem ou mal, viveu antes da morte. 2022 foi abundante no que diz respeito à morte de famosos.
O mundo do espetáculo foi particularmente brindado com algumas mortes sentidas. Senti a morte de Jô Soares, o eterno Gordo, o Gordo por antonomásia, que tinha ciúmes de alguém que fosse mais gordo do que ele e que dedicou a sua vida a fazer a vida dos outros um pouquinho mais alegre. Gal Costa também nos deixou, deixando-nos o perfume da clareza da sua voz, como um dia de domingo. Ainda no Brasil, chorei a morte do incontornável Erasmo Carlos, poeta do amor, cantor do carinho, letras únicas, muitas delas cantadas por um dos reis da música popular brasileira, Roberto Carlos.
Eunice Muñoz, referência única no teatro português, a mulher que gostava demasiado da vida para se zangar com ela. Muñoz e o teatro português declinam-se da mesma forma. Com uma carreira tão fulgurante quanto frágil, Linda de Suza encantou um pouco a minha infância com aquela música que fazia emocionar… “uma moça chorava”, e a mulher da “valise de carton” também partiu no esquecimento depois da glória. Não deve ser fácil ser anónimo depois da fama, bem dizia Dalida, que “queria morrer no palco”. Na literatura, morreu prematuramente aquele que eu considerava o maior escritor espanhol da atualidade, Javier Marías, o homem que criou uma nova maneira de entender a literatura.
O futebol também morreu um pouco. Ainda me lembro bem daquele bigode que corria à frente de um corpo franzino, a ziguezaguear por entre as pernas dos adversários, talento enorme nos pés, que dava pelo nome de Chalana. E daquele que foi o meu único ídolo de infância, aquele que, aos oito, nove, dez anos, me fez sonhar com os seus golos à barda: quando o Porto marcava um golo e o relatador gritava, esperava-se sempre um nome no fim do goooooooolo: Fernando Gomes. Já no fim do ano, fomos surpreendidos com a morte do eterno, do maior de todos os tempos. Podem falar de Maradona, Messi ou Ronaldo, Ronaldinho ou Di Stefano. Pelé, o menino que aos 17 anos marcou dois golos na final do mundial de 1958, foi o mais completo de todos os tempos. Era bom em tudo. E foi com tristeza que quase todos os portugueses assistiram ao princípio de um outro tipo de morte, o esperado e temido princípio do fim da glória do nosso Cristiano Ronaldo.
No planeta geopolítico vimos partir uma figura estranhamente única, o protagonista da queda do império soviético, Mihail Gorbachov. Odiado dentro de portas pelos saudosistas do czarismo – imperial e bolchevique –, admirado em quase todo o resto do mundo, Gorbachov é um exemplo de como o bem nem sempre é amado. No entanto, a morte mais badalada de 2022 foi a da eterna rainha do mundo, Isabel II de Inglaterra, soberana de mais 14 países da Commonwealth. A Inglaterra, o Reino Unido, a Commonwealth deixaram de ser as mesmas depois de Isabel II. Ela era uma espécie de mãe protetora da aura inglesa, que se vê órfã, depois de setenta anos de reinado.
Na Igreja, partiu Dom António de Sousa Braga, bispo que preferia servir a presidir, segundo as suas palavras. O homem que prezava a simplicidade e a proximidade, o homem da Igreja do Concílio, do diálogo e do abraço, que nós não soubemos aproveitar devidamente.
E Bento XVI, a última morte de 2022, o homem da profundidade teológica, da razão e da fé, o homem que teve a coragem de assumir as rédeas da Igreja depois de João Paulo II e dos seus 27 anos de pontificado. O homem que teve a coragem de dizer adeus quando achou que já não podia, o homem que soube fazer as coisas todas no seu devido tempo. A Encíclica “Deus Caritas Est”, tão pequena e numa linguagem tão acessível, é um dos mais belos documentos alguma vez escritos por um Papa.
Só mais dois avisos à navegação para 2023: primeiro, a guerra na Ucrânia, um conflito tão estúpido quanto global, já que nos atinge a todos: quando e como terminará? Eis a pergunta de um milhão. A questão nuclear vai agravar-se? A tempestade perfeita vai chegar este ano? Ou teremos boas notícias?
O segundo aviso para 2023 vem outra vez da China. Há três anos, por esta altura, saía daquele país um vírus que parou o mundo. A história está a repetir-se…
Mas enquanto não há morte há esperança. Porque morrer é a última coisa.