Quem sorri morre menos

Pelo Padre José Júlio Rocha

Meus avós paternos casaram em 1935, antes – imaginem – da Segunda Guerra e no tempo em que a ditadura de Salazar dava os primeiros passos. Ainda não havia eletricidade, os caminhos de terra batida chegavam para as carroças e burros, uma vez que os automóveis, raros e estranhos, poucas vezes se viam por ali. Os homens andavam descalços, calças de cotim e chapéu na cabeça. As mulheres de saia comprida até aos pés e um lenço na cabeça, que era uma vergonha mostrar os cabelos.

O tio Urbino era um dos sábios da paróquia que, quando chegava o jornal da cidade, se dirigia à barbearia do meu avô, ali, na esquina da Canada do Biscoito, e lia, aos iletrados utentes, as notícias da terra, do país e do mundo. A vida andava muito devagar, ritmada pelos ritos do dia-a-dia, desde as trindades até às refeições, das horas da missa à cozedura do pão, das vindimas às matanças do porco, desde o carnaval ao bodo, das touradas de verão ao mês das almas no outono.

A freguesia estava mergulhada em lendas antigas, desde o homem da Fonte do Bastardo que foi a Roma a pé até às almas do outro mundo que, penadas, vagueavam na noite a pedir socorro e a travejar de medo os caminhantes noturnos.

O padre que casou os meus avós viera da freguesia vizinha, a Vila. Foram buscá-lo numa carroça. Não havia padre na freguesia. Isto porque, em fins dos anos 20 do século passado, reinava um padre de quem o povo não gostava, coisa não rara ainda hoje, porque, normalmente, não se gosta de padres, de polícias, de advogados nem de políticos. Quando o padre saiu da Fonte do Bastardo, atiraram-se canas do ar, ou foguetes, se preferirem. Isto chegou aos ouvidos do bispo que, por castigo, interditou a paróquia durante sete anos: não teriam padre próprio e os das paróquias vizinhas é que vinham celebrar os sacramentos.

Como seriam as nossas freguesias rurais nos anos 30 do século passado? Podemos adivinhar por algumas fotografias, escritos e pouco mais. Muitas casas em pedra nua e com telhados de palha, a pobreza singela e arrematada, homens e mulheres de vida simples e monótona, levantar de manhã, com o nascer do sol, e trabalhar pela sobrevivência até ao sol-posto.

Essa monotonia ia sendo quebrada por rituais compassados e um deles era o carnaval. Meu avô conta que, pela altura em que casou, talvez uns anos mais tarde, passou pela freguesia, durante o carnaval, uma dança, daquelas que eram sempre cantadas, sem assunto falado, como era uso naquele tempo. Vinha das Lajes, se não estou em erro, e dançou em frente do império do Espirito Santo da Fonte do Bastardo, o terreiro velho que, mesmo longe da igreja, era o centro da freguesia.

Os velhos iletrados têm, normalmente, uma memória prodigiosa. E meu avô não fugia à regra. Ainda se lembrava de algumas quadras que aquele bailinho cantava, sobre a vida de um ladrão:

 

Zan zan zira, zan barabambambira.

 

Sou ladrão desde os três anos,

Não conheço senão mal.

Minha mãe é esta faca,

Meu pai é este punhal.

 

Eu sou ladrão

Cá de mim ninguém se vinga.

O meu trabalho é roubar,

Tomar a pinga.

 

E eu ria com o meu avô a cantar essas memórias de outros tempos.

Voltei a ouvir essa cantilena outra vez, aqui há uns três ou quatro anos, quando, numa visita aos doentes e idosos do Porto Martins, me encontrei com o tio José Vieira “Muleta”. Tinha nascido nas Lajes e vivido, desde muito cedo, na Fonte do Bastardo até se casar para o Porto Martins.

Falando com ele e recordando o antigamente, de repente ele começa-me a cantar a cantiga da dança, tal e qual como meu avô a cantava quarenta anos antes. Tudo ali, certinho e limpinho. Apesar de mais novo sete anos, fora amigo de meu avô, que lhe cortava o cabelo no tempo em que se saudava com um “hom’haja saúde”.

Entre lotes de cantigas e histórias velhas, fui descobrindo o tio José Vieira em toda a sua simpatia. Com uns olhinhos claros de menino e um sorriso quase permanente que lhe enruga as faces, o Tio José Vieira nunca desistiu de ser criança. Olha como uma criança, canta como uma criança, ri-se, magotes de vezes, está quase sempre a rir, como uma criança. A vida difícil de antigamente, levou-a com alegria e paz.

O tio José Vieira “Muleta” fez cem anos há poucos dias e não é preciso perguntar-lhe o segredo da sua longevidade. Está no sorriso.

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