Quem não vê corações só vê caras

Foto: Igreja Açores / José Cabral

Pelo Padre José Júlio Rocha

Aos dezoito anos ainda tenho aquele póster quase antigo dos “Fun”, a cantar “Tonight we are young… So let’s set the world on fire”, agarrado à porta do quarto onde durmo. É uma canção já velha, e eu gosto de coisas mais antigas, e aquela música agradava-me pela pujança, pela distração, pela decisão de incendiar o mundo, que é o que toda a malta nova quer quando quer alguma coisa.

Foi a adivinhar os contornos do quadro, no escuro, para lá das duas da manhã, que tudo aconteceu. A princípio era só um formigueiro na boca do estômago, um incómodo roçagar de borboletas. De repente, um calor alastrou-se daí ao corpo inteiro. Enchi os pulmões de ar, aflito, expeli o ar, voltei, como quem quase se afoga, a inspirar com violência. Senti como que o estômago e as tripas encolherem-se num aperto até ficarem do tamanho de uma bola de ténis. Virei-me, encolhi-me todo à volta do estômago. A garganta apertava como que a sufocar e o coração disparou em batidas de tambor que me faziam explodir as têmporas, as pontas dos dedos das mãos e dos pés. Suores frios pela face abaixo, nas palmas das mãos, vontade de gritar, de dar um berro. Levantei-me, estonteado e aflito. Um pouco de paz. Que terá sido? Agora respiro fundo e os suores arrefecem-me. Ainda sinto o formigueiro, ainda sinto o medo. E se acontece outra vez? Foi só pensar que podia acontecer para acontecer. O pânico regressou, o medo de morrer ali mesmo, o estômago a apertar como se dentro de um saco de vácuo, os pulmões a arder. Toda a noite lutei com a morte e soube, no outro dia, que foram ataques de pânico.

Acordei vazio. Sim, era essa a palavra: vazio. Um buraco no peito, uma sensação de desamparo, como alguém que cai de um precipício sem nunca chegar ao fundo. Tenho medo de me levantar, de se voltarem a repetir aqueles ataques descontrolados, tenho medo. Medo. Medo do medo. De repente, sinto que não tenho amigos, cada um está na sua vida e eu estou só. Miríades de pensamentos rápidos atravessam-me a mente. Todos mais ou menos destrutivos, tristes, assustados. O mundo parece-me um lugar sem sentido, como se não houvesse nada de novo ou estimulante debaixo do sol. Já tudo está feito, a vida é repetir sempre as mesmas coisas, os mesmos vazios, o mesmo nada, o eterno retorno.

Ando há dias nisso, nessa depressão fria e ansiosa ao mesmo tempo, e ninguém deu por nada. Meu pai é distante e frio, duro como pedra e eu nunca conseguirei ser como ele. Quer notas boas, bom comportamento, nada de drogas nem álcool, universidade à porta, nada de mariquices. Para ele, se eu desabafasse o meu medo e o meu vazio, era mais uma mariquice. Minha mãe chora. Chora muito e muito mais choraria se soubesse que a morte persegue os meus pensamentos.

Ainda me vem à mente a Isabel, mas como um pensamento vago, distante e incómodo. No ano passado pediu tempo para pensar a nossa relação. Duas semanas depois vi-a na rua, a olhar para a montra de uma loja de não sei quê, de mão dada com um rapaz que eu conhecia vagamente. Fiquei destruído. Pensei que não havia nada pior do que ser trocado, mas agora esse vazio frio é mais escuramente frio. Um medo gelado, como se estivesse a subir uma escada que leva a nenhures. Ninguém repara no medo que sinto de falar em público, nas aulas, nó na garganta, sensação de que vou cair. O professor acha que eu estou propositadamente desinteressado da aula, distraído, julga que a minha indiferença é uma estúpida rebeldia, um desprezo. Não sabe que me falta o ar de cada vez que entro na sala. Os colegas nada perceberam. Bebo mais, bebo às escondidas, que adormece a dor da ansiedade e do vazio. Nessas alturas conto umas anedotas, rio-me por desespero e todos se riem com a minha desgraçada alegria.

Tenho-me pela pessoa mais infeliz que conheço. Porque é que os outros não sentem o que sinto, porque é que sou tão anormal, como poderei dizer a minha mãe que tenho medo? E odeio o sol. Quero o escuro, um quarto às escuras e dormir até isso me passar, se é que algum dia isso passará. E eu sei bem, com uma estranha acuidade, como tudo isso passaria. Talvez só me falte atravessar esse último medo e todos os medos desaparecerão…

Não quero entrar na universidade, não quero o amanhã. Meu pai enerva-se, ameaça-me sem nada dizer, porque ainda não me decidi pelo curso, um inútil que sou para ele, que nem sequer me importo com o futuro e passo os dias a esfregar os dedos pelo ecrã do telemóvel. Faço-o maquinalmente, como um vício, um refúgio, um lugar onde colocar as mãos diante de gente: o smartphone vazio, vazio, vazio.

Como é que pode haver gente feliz? Essa gente não pensa? Não enxerga que a vida é um nascer para morrer, que todas as vidas são um adiar da morte como os rios são um adiar do mar? Não me ensinaram Deus. Ouço dizer que Ele é o consolador dos aflitos mas não me ensinaram a rezar. Experimento, com franca desesperança, recorrer a Deus. Que palavras usar? Que sentimentos tenho, eu que nunca Lhe senti a falta? Tenho a sensação de que são palavras lançadas ao vazio.

À noite tenho medo de apagar a luz. Não suporto a luz acesa. Fico acordado, com medo de mais um ataque a amarfanhar-me o estômago.

Não me falta nada. Foram-me oferecendo a felicidade em pacotinhos, para a minha satisfação pessoal imediata e esqueceram-se de que o que eu precisava era de um amanhã. Cheio de tudo por fora. Uma cratera na alma…

 

Ps: esta é uma história fictícia, daquelas que nos passam diante dos olhos todos os dias.

 

*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.

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