Quaresma: “São Miguel transforma-se no próximo sábado num enorme santuário de Céu Aberto”

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Quaresma de 2023 marcada pelos abusos de menores e regresso dos romeiros à estrada. Bispo de Angra pede aos romeiros oração pelos jovens, pelas vítimas de abusos, pelos pobres e pela Igreja

Começa esta quarta-feira o tempo da Quaresma, o tempo favorável de preparação para a Páscoa, que nos Açores, em particular na ilha de São Miguel, vai ser marcado pelo regresso dos 55 ranchos de Romeiros às estradas da ilha. Os primeiros 11 ranchos saem já na madrugada de sábado.

“É com uma imensa alegria que retomamos as nossas atividades normais e também com muita alegria que vemos ser possível que a Ilha de São Miguel se transforme num Santuário a Céu aberto” disse ao Igreja Açores o responsável pelo Movimento Romeiros de São Miguel, João Carlos Leite.

“O que acontece em são Miguel na Quaresma é inenarrável: não é só a caminhada, mas a envolvência de todos, das comunidades seja no clima de oração seja no acolhimento” refere o dirigente que salienta a vontade de todos em regressarem “ao caminho”.

A grande incógnita é saber se vai ou não haver número suficiente de romeiros para que cada um dos 55 ranchos possa sair. Habitualmente, cada rancho tem em média 40 a 50 homens, “há uns que têm mais outros menos” , mas “ não é bom ter menos de 20” e com a pandemia, “não sabemos se há irmãos que ainda poderão sair por causa da idade”.

“Muitos dos irmãos já não o poderão fazer por causa da idade- todos os anos temos romeiros que por causa da idade e da saúde completam a última romaria- e devem estar muito sentidos porque não puderam realizar a `última romaria´, com estes quase três anos de interregno”, destacou João Carlos Leite.

Outra preocupação, este ano, são os jovens.

“Não terem existido romarias durante 3 anos fez com que muitos jovens perdessem de vista esta experiência e, por isso, não sabemos se este ano vamos ter muitas crianças e jovens” referiu em entrevista ao Igreja Açores.

As crianças ocupam a `liderança´, por assim dizer do rancho, caminhando à frente dos mais velhos, carregando a Cruz. Por outro lado, há a questão das pernoitas.

“Há muitas famílias que já não podem receber romeiros e por isso fica o desafio aos casais mais novos para que possam fazer essa experiência, que é uma verdadeira teologia de afectos” refere o responsável dos Romeiros de São Miguel.

A questão das dormidas, ou pernoitas, é fundamental na caminhada dos romeiros. À boa maneira dos discípulos, estes homens munidos de um bordão, de alforge às costas, vestindo um xaile e um lenço, caminham do nascer ao por do sol sem saber onde vão reclinar a cabeça na noite seguinte, confiando na caridade das famílias e das comunidades.

“A pernoita em casa de família é sempre importante, mas quando não existe essa possibilidade contamos com a ajuda das juntas de freguesia, dos salões paroquiais e até de clubes desportivos que já nos cederam instalações para tomarmos um banho que é absolutamente reparador para a caminhada”, refere ainda João Carlos Leite salientando a força deste movimento de homens que congrega tantas boas-vontades ao longo do caminho.

Aos ranchos locais juntam-se dois da diáspora, vindos de Toronto, mas congregando “irmãos” dos Estados Unidos e da Bermuda. Apesar da existência destes dois grupos, “há ainda muitos emigrantes que se juntam aos ranchos das suas freguesias de origem, até como forma de ligação à terra”.

As contas de um rosário partilhado com todos

Na bagagem levam sempre intenções, suas, familiares, e também do bispo, para além das que vão recebendo ao longo do caminho, entregues por pessoas na rua, que com eles se cruzam.

Este ano, pela primeira vez, D. Armando Esteves quis `caminhar ´com os Romeiros. Não o podendo fazer na estrada deixou intenções e pedidos de oração especiais, comprometendo-se ele próprio a rezar com os ranchos. Ao todo são 17 as preces deixadas, com especial destaque para os jovens e para as “vítimas de abusos”.

“Por todos os jovens da diocese”, “Pela Jornada Mundial da Juventude”, “Para que todos os jovens se sintam chamados a uma vocação, seja na família ou na vida consagrada”, “Pelas crianças sem lar, sem família unida e sem pão” e “por todas as vítimas de abusos” são algumas das preces do novo bispo de Angra.

D. Armando Esteves pede, ainda, aos Romeiros que rezem pelas “famílias e lares desavindos”, pelos “pobres e desprezados”, pelos “padres e leigos missionários”, pelos “desempregados e por todos os que têm salários insuficientes para sustentar dignamente a sua família”, pelos “nossos velhinhos que vivem em família ou em lares de acolhimento para que se sintam sempre amados”, pela “renovação da Igreja Açoriana e todas as suas estruturas e movimentos”, pela “santidade dos sacerdotes, religiosas e religiosos”, “pela diocese de Angra e pela Igreja presente nas 9 ilhas”, pelo “Santo Padre e todos os bispos”.

O bispo de Angra não esquece, finalmente, as “autoridades para que zelem pelo bem comum e pelos Romeiros e todos os peregrinos das diversas devoções nos Açores” para que “sejamos agradecidos pelo dom dos irmãos que Deus nos dá”.

“Ao nosso Bom Deus agradeço pelo dom dos nossos Romeiros e peço que as romarias Quaresmais encham de esperança o coração de cada um, reanime a sua vida familiar e profissional e traga gente renovada à vida das comunidades paroquiais a que pertencem”, afirma ainda o prelado.

“Que o mundo onde vivemos se torne um lugar cheio de paz e justiça, onde dê cada vez mais gosto viver” escreve invocando a bênção de Deus sobre os Romeiros, para que “ o Divino Espírito Santo ilumine o caminho para que os vossos pés não se firam”.

Apelo à segurança

Neste período há, ainda, o apelo á segurança, dos romeiros e dos automobilistas.

“Na sexta-feira, dia 24, intensificaremos os apelos à segurança, com a distribuição de informação no aeroporto de Ponta Delgada para que os turistas que cheguem à ilha tenham noção de que há grupos de romeiros nas estradas e por isso é preciso conduzir com cautela”.

O pedido não é novo, mas é sempre renovado nesta altura em que andam tantas pessoas na estrada. A partir do segundo  domingo da Quaresma até à quinta-feira santa, de forma muito particular, intensificar-se-á o úmero de pessoas a pé nas estradas. Pelo menos 22 ranchos estarão ao mesmo tempo nas estradas da ilha, para além dos grupos de senhoras, que por um dia fazem a sua romaria.

As romarias quaresmais completam este ano 500 anos e nos últimos três, por causa dos constrangimentos sanitários impostos pela pandemia, não saíram. Dos 55 ranchos apenas saíram 21 em 2020. Desde então não há Romarias.

Também na Terceira, em São Jorge e na Graciosa sairão ranchos de homens que durante seis dias caminharão nas respetivas ilhas. Em São Jorge, na Terceira e em São Miguel também existirão ranchos de mulheres que adoptarão o mesmo sistema de pernoitas e sairão em romaria, embora durante um período mais curto.

O caminho sinodal desta quaresma

A Igreja Católica vai iniciar esta quarta-feira o tempo da Quaresma, de preparação para a Páscoa, este ano em ligação ao processo sinodal lançado por Francisco, que pede abertura à “novidade”.

“O caminho sinodal está radicado na tradição da Igreja e, ao mesmo tempo, aberto para a novidade. A tradição é fonte de inspiração para procurar estradas novas, evitando as contrapostas tentações do imobilismo e da experimentação improvisada”, escreve, na sua mensagem para o novo tempo litúrgico, com o tema ‘Ascese quaresmal, itinerário sinodal’.

Francisco aponta a uma “transfiguração, pessoal e eclesial”, na preparação para a Páscoa e no Sínodo 2021-2024.

“É preciso pôr-se a caminho, um caminho em subida, que requer esforço, sacrifício e concentração, como uma excursão na montanha. Estes requisitos são importantes também para o caminho sinodal, que nos comprometemos, como Igreja, a realizar. Far-nos-á bem refletir sobre esta relação que existe entre a ascese quaresmal e a experiência sinodal”, apela.

A mensagem pede atenção particular aos “rostos e vicissitudes daqueles que precisam de ajuda”.

“A escuta de Cristo passa também através da escuta dos irmãos e irmãs na Igreja; nalgumas fases, esta escuta recíproca é o objetivo principal, mas permanece sempre indispensável no método e estilo duma Igreja sinodal”.

O Papa sugere uma maior atenção, neste período, para a leitura da Bíblia e a celebração litúrgica.

“Se não pudermos participar sempre na Missa, ao menos leiamos as Leituras bíblicas de cada dia valendo-nos até da ajuda da internet”, recomenda.

Francisco alerta para os perigos de uma “religiosidade feita de acontecimentos extraordinários”, que ignora a vida quotidiana.

“O nosso conhecimento do Mestre, para compreender e acolher profundamente o mistério da salvação divina, realizada no dom total de si mesmo por amor, é preciso deixar-se conduzir por Ele à parte e ao alto, rompendo com a mediocridade e as vaidades”, acrescenta.

Numa reflexão sobre a vivência espiritual da Quaresma, o Papa sustenta que “tanto no itinerário litúrgico como no do Sínodo, a Igreja não faz outra coisa senão entrar cada vez mais profunda e plenamente no mistério de Cristo Salvador”.

“Podemos dizer que o nosso caminho quaresmal é ‘sinodal’, porque o percorremos juntos pelo mesmo caminho, discípulos do único Mestre”, realça, concluindo.

A Quaresma é um tempo litúrgico, de 40 dias (a contagem exclui os domingos), que tem início com a celebração de Cinzas (22 de fevereiro, em 2023), marcado por apelos ao jejum, partilha e penitência; serve de preparação para a Páscoa, a principal festa do calendário cristão (este ano a 9 de abril).

 

 

 

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