Político, inteligente, honesto…

Foto: Igreja Açores / José Cabral

Pelo Padre José Júlio Rocha

A primeira metade do século XIX em Portugal é uma das mais dramáticas da sua história, comparável talvez só à segunda metade do século XVII, essa também marcada pela guerra com Espanha e pela carestia a que essa guerra sem fim nos arrastava.

O princípio do século XIX traz-nos as Invasões Francesas, três, que trouxeram grande devastação, tal era a brutalidade das tropas de Napoleão, sobretudo a delapidar o melhor do nosso património. A Coroa refugiou-se no Rio de Janeiro, uma escolha acertada, uma vez que nada podíamos contra os batalhões Franceses e, assim, com a coroa no Brasil, Portugal mantinha a sua independência e assegurava a navegação intercontinental, que é o que interessava mais ao país e, por isso, preferência por Inglaterra, rainha dos mares e inimiga de França.

Depois das Invasões, o general inglês Beresford continuou a ditar em Portugal, o que levou a um descontentamento imenso na Metrópole. Portugal exigia que o rei, D. João VI, regressasse a Lisboa.

Entretanto, depois do regresso do rei, dá-se a independência do Brasil, com D. Pedro IV (1º do Brasil) a gritar no Ipiranga: “Independência ou morte!” Portugal perdia a sua galinha dos ovos de ouro, voltando-se, no entanto, o mais depressa possível, para Angola e Moçambique, da costa à contracosta. Várias revoluções marcaram essa época, com Dom Pedro IV e Dom Miguel a disputarem a Coroa portuguesa, um liberal e um absolutista, com a menina Dona Maria II pelo meio, e tudo isto veio a dar uma devastadora guerra civil de que só saímos em 1834 com um país em ruínas. Continuaram motins, revoluções, manifestações que atravancaram Portugal até meados do século, quando apareceu a regeneração e o progresso com as novas tecnologias da Revolução Industrial, sobretudo o comboio.

No meio dessa amálgama que foi a primeira metade do século XIX, uma figura destaca-se pela sua hombridade, embora não se fale muito nela, por razões comuns ao desconhecimento que temos das tramas políticas dessa época. Manuel Fernandes Tomás não é conhecido e julgo impressionante que, em sua memória, exista, em Lisboa, apenas uma ruela, ali entre o Chiado e Alcântara e, no Porto, uma rua, mais nobre, entre a Câmara e o Campo 24 de Agosto, data intimamente ligada a Fernandes Tomás. Vá lá que, na sua terra natal, a Figueira da Foz, onde nasceu em 1771, lhe dedicaram uma merecida estátua. Mas quem foi?

Formado em direito na Universidade de Coimbra, cedo se destacou pela sua inteligência, oratória, honestidade e capacidade de trabalho. Em 1805 foi nomeado superintendente das alfândegas e dos tabacos nas comarcas de Leiria, Aveiro e Coimbra, cargo que desempenhava quando, em 1807, ocorreu a primeira Invasão Francesa. Aí colaborou com o exército inglês. Mas os ingleses também abusaram e a abominável execução do general Gomes Freire de Andrade às mãos dos ingleses despertou um sentimento de revolta nacional e de exigência do regresso do rei.

Nessa altura já Manuel Fernandes Tomás era juiz desembargador da comarca do Porto e é aí que tudo se vai passar. Perante o estado das coisas, estabeleceu, em Janeiro de 1818, um pacto secreto visando o fomento de ações que contribuíssem para a implantação do liberalismo em Portugal e para a dignificação da vida nacional: estava criado o famoso “Sinédrio”. É esta instituição, cujo cérebro será sempre Fernandes Tomás, que faz a Revolução do Porto, a 24 de Agosto de 1820, conhecida como movimento “Vintista”. Viria a acabar com a revolução da “Vilafrancada”, de cariz absolutista, em 1823.

Entretanto, e já no Palácio de São Bento, transformado na Assembleia dos Pares, Manuel Fernandes Tomás trabalha afincadamente na elaboração da primeira Constituição Portuguesa, de 1822, constituição liberal, que concedia ao rei apenas o papel de moderador do Reino, e que Dom João VI jurou com uma lágrima no olho.

Um dos cavalos de batalha de Fernandes Tomás foi a honestidade política. Quem servisse o povo devia fazê-lo gratuitamente, porque, para ele, o Bem Comum exigia que, quem o regulasse, dele não tirasse nenhum proveito, não fosse o demónio da corrupção apoderar-se, como de costume, de algumas cabeças. Apesar de polémica, essa decisão não causou muitos incómodos, dada a popularidade e a fama de hombridade incomparável que dele fizeram um homem amado e admirado.

Foi então que o feitiço se virou contra o feiticeiro. Manuel Fernandes Tomás, o “patriarca da regeneração portuguesa” nas palavras de Almeida Garret, não tinha outras fontes de rendimento. Foi trabalhando com afinco na elaboração da primeira constituição portuguesa, a pão e chá. A 4 de novembro de 1022 era promulgada a “Constituição Política da Monarquia Portuguesa”, eminentemente liberal e polémica: o grande soberano começava a ser o povo. Exatamente quinze dias depois, a 19 de novembro, na antiga rua do Caldeira, n.º 2, em Santa Catarina, Lisboa, Manuel Fernandes Tomás morria… de fome.

Muito se pode dizer das suas opções políticas. Nada se pode apontar à sua inabalável honestidade. Quando ele falava, o mundo parava, o silêncio na Assembleia era religioso, partidários e adversários ouviam. Um exemplo extraordinário e raro.

No Hemiciclo principal da nossa Assembleia da República, no Palácio de São Bento, por cima dos lugares do governo e da presidência da Assembleia, impõe-se uma luneta em semicírculo com um a pintura representando as Cortes Constituintes da primeira Constituição. De pé, com a mão direita apoiada na mesa e a esquerda erguida, aparece a figura imponente de Manuel Fernandes Tomás a falar para a Assembleia. De ontem e de hoje.

Cada um imagine o que ele estará a dizer à massa política de hoje…

*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.

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