Pelo Pe Teodoro Medeiros
Scorcese diz que ver um filme é deixar-se envolver por ele, e pensar no que significa ser-se humano. Muitas vezes, isso acontece porque o filme nos provoca, nos leva aonde não queríamos ser levados e nos faz olhar a vida de outra forma. Além dos filmes que, segundo o realizador, têm a capacidade de surpreender e dar coisas novas mesmo que sejam vistos e revistos durante muitos anos.
É evidente que fala como profissional, como pessoa que quer fazer filmes e procura inspiração nos grandes mestres (na entrevista citada ele referia-se a Kubrick). Mas também é verdade que isso diz muito sobre o modo como entende o cinema: uma espécie de processo de conversão do espetador.
Ou seja, a vocação de “Marty” (que ele próprio chegou a pensar que fosse a de padre) é de dar a conhecer pessoas e ideias modelo de forma autêntica, credível. Pense-se no “Gangues de Nova Iorque”: a violência de Daniel Day-Lewis é um modelo do que não se deve seguir (além de uma prova de ADN estado-unidense, mas não é isso que nos interessa).
Esse desafio que se sustenta nos personagens é talvez o que mais se esquece na hora de fazer e ver filmes. Mas é pena. Veja-se um caso recente deste erro: “Interstellar” de C. Nolan. Um homem de família viaja no universo para salvar a Terra e é explorada a falta que a filha lhe faz e a comunicação que consegue estabelecer com esta, apesar de estarem em tempos diferentes.
Um argumento muito astutamente construído, apesar de alguns excessos na interpretação dos dados científicos. Se bem que o cinema não é uma sala de aula: não será isso mesmo que quer dizer “ficção científica”, inventar ciência? O que desilude é descobrirmos, ao fim, que a tal ligação à filha era um logro. Depois de tantos, saudosos anos separados, ele não perde mais de cinco minutos com ela.
O exemplo permite-nos precisar o que constitui um personagem autêntico; é alguém que nos pode desiludir em tudo, menos na sua credibilidade (ou verosimilhança). O homem de “Interstellar” era um modelo de pai durante todo o filme mas, ao final, muda de comportamento, no que parece ser apenas um constrangimento do inevitável happy ending.
É essa a raiz da questão: como na vida, as pessoas não mudam sem uma boa razão. Um personagem com pés de barro é uma figura de papelão e ninguém acredita nele. Poderá entreter muito e bem, mas não será nunca uma reflexão sobre a vida ou o que significa ser humano ou ainda o que me pede este personagem que eu mude em mim mesmo.
Postas assim as coisas, é muito razoável que se admita o óbvio: cada pessoa terá as suas preferências e “de gustibus non est disputandam”, não vale a pena discutir gostos. O que não é o mesmo que dizer que o debate não faça sentido: que pode haver de melhor do que a prospectiva de uma troca de ideias sem resultados pré-definidos?
Personagens complexos. Aqueles que têm traços contrastantes em simultâneo. Seria de excluir os que têm um passado obscuro mas já romperam com ele, mesmo se alguém os persegue por esse motivo. “Lawrence of Arabia” (a tradução “Lourenço” soaria mal); trata-se de um herói que começa por não sê-lo e continua não o sendo. Como entender este homem?
O filme mostra quer a sua intensidade e concentração (como os três dias de aflição até descobrir o plano perfeito); o seu carisma (a carga ao comboio, de espada em riste); mas também a fragilidade, o conflito
interior (o medo que tinha de si próprio e o desafeto pelas honras militares). O Jesus de “A Última Tentação de Cristo” é demasiado humano mas conhece muitos momentos de êxtase e sublimidade.
Trata-se de um Jesus incerto, combalido das esperanças de libertação política do seu povo. Evolui para uma mensagem diferente e provocatória, confiando apenas em Deus e na missão que sabia ter recebido d’Ele. Deixa-se tentar, compadece-se de si mesmo e desiste… mas volta, no último assalto, para nocautear o adversário. As duas naturezas lutam uma com a outra até ao fim.
O Michele Apicella de “Bianca”, filme de Nanni Moretti: um professore de Matemática que se preocupa muito com a vida dos seus amigos. Apaixona-se pela bela Bianca mas o seu inconformismo com a vida e a sua incapacidade social amarram-no. E também é homem que esconde as suas obsessões.
Personagem que enfrenta o destino mas não o vence. Aqui alia-se a complexidade à realidade mais dura. À cabeça, a Gelsomina de “La strada”, a rapariga que descobre a sua vocação por comparação com uma pedra de cascalho. Uma figura do Cristo sofredor que tentou fugir à cruz mas não o conseguiu. A tendência é trágica mas expõe uma alma como se fosse uma fratura exposta.
Outro caso é o do “Wrestler”, em que Mickey Rourke faz um pouco de si mesmo; um homem que nunca soube viver faz por reconstituir-se da melhor maneira. E quase consegue, tornando-se humano e próximo. Mas a escada mais difícil de escalar somos sempre nós mesmos.
O trabalhador de “Ladrões de bicicletas” é alguém desesperado por emprego na Itália pós-guerra. Quando lhe roubam a sua bicicleta com que cola cartazes na cidade, tudo desmorona à sua volta e ele próprio entra em desespero. O fato da cena mais significativa ser vista pelos olhos do filho só lhe dá mais impato.
Personagens acima da individualidade (o “larger than life”). Aqueles heróis ou figuras que tendem a representar um conceito de forma quase impossível, embora conservam todos os traços que seriam de esperar. Difícil não começar pela excelente “Ponette”, a rapariga de quatro anos inconformada com a morte da mãe. A lembrar que as crianças sabem mais do que nós.
Sophia Loren em “Os Girassóis” encarna uma espécie de impossível fé na vida. Vai à Rússia resgatar o marido desaparecido na guerra e supera os obstáculos, interiores e logísticos, que se lhe apresentam. É um espectro do que o feminino tantas vezes se obriga a ser. E ensina a diferença entre dramatismo chocho e obra-prima (viva De Sica sempre!).
“O Belo António”, Mastroianni no papel do rapaz que tem tudo… até não ter quase nada. A sua beleza perfeita e a sua ingenuidade são mais aparentes que reais, embora ninguém se dê conta disso. António é alguém tão atormentado quanto desejado. Raras vezes se retratou a oposição entre o exterior e a psique com tanta mestria.
E finalmente o quase bíblico, filmado com uma só câmara, “Ondas de Paixão”, de Lars von Trier. A distância de 20 anos é um pouco desconfortável para uma visão mais precisa mas também é sintoma do seu poder. É a história da esposa dedicada que abdica de mais do que se pensa possível por amor: porque só é impossível quando não se acredita. Um hino Cristológico.