Por Pe Júlio Rocha
Em 1948 Vittorio de Sica realizou um dos mais belos filmes do panorama europeu e mundial: “Ladrões de Bicicletas”. O ambiente é apenas o que resta dos destroços humanos da Segunda Guerra: uma Roma que apenas mantém de pé os seus monumentos, mas onde se arrastam fantasmas de homens derreados pela fome, a morte, os traumas da guerra e um futuro sem sentido.
Antonio é um pai. Pai de uma criança de 7 ou 8 anos, desocupado, com uma família por alimentar nos restos da periferia romana. Consegue um emprego: afixar cartazes, trabalho que precisa de bicicleta. Há um esforço sobre-humano, dele e da mulher, para comprar uma. E é com um orgulho de pai, cuja dignidade fundamental reside em dar de comer aos filhos e em mostrar-lhes o prisma honrado da vida, que mostra, honrado, a bicicleta ao seu filho.
Acontece que, no primeiro dia de trabalho, alguém lhe rouba a bicicleta. Naquela selva humana, a humilhação tem uma profundidade indefinida: alguém foi mais esperto do que ele, o que, diante do filho, é muito doloroso; além disso, está na iminência de perder o trabalhinho; tem de ouvir os vitupérios da mulher, que precisa de couves e sal para a sopa; e conviver com a possibilidade da fome e das lágrimas do filho.
Parte do filme conta a história – inglória – do resgate da bicicleta roubada. E não é apenas de uma bicicleta que se trata: ela representa a busca da possibilidade – remota – de sobreviver mantendo o que resta a um pai: dignidade. É então que pai e filho atravessam a cidade, anónima e violenta, à procura de uma ridícula bicicleta que, aos poucos, se transforma em quase tudo nas suas vidas. Dias de buscas inúteis. Mas eis que o acaso lhes traz uma luz: encontram a bicicleta e o respectivo ladrão. Depois de uma disputa acesa, o filho consegue chamar a polícia e, numa longa querela, impiedosamente, sarcasticamente, inexoravelmente, a autoridade declara não ter provas de nada e o ladrão torna-se, por decreto da autoridade, o dono legítimo da bicicleta. Chove diluvianamente. Chove nas ruas cinzentas de Roma, no chapéu cinzento do pai, nos botins cinzentos do menino. Chove cinzentamente do céu. E chove sobretudo porque o pai não sabe explicar ao filho como é que vida e dignidade podem ser parentes depois de uma guerra.
Na deambulação pela cidade chamada Vida, de mãos dadas, pai e filho vão dar às imediações do estádio, num parque onde milhares de bicicletas se oferecem à tentação do pai. E o pai cai na tentação. Mas cai mal, porque o dono estava mesmo ao lado. Resolve fazer justiça, chamar a polícia, atirar para a cadeia aquele bandido. Mas tem pena da criança, que começa a chorar desabaladamente. A chorar pelo pai. E o dono da bicicleta resolve mandá-los embora com valentes avisos. O filme termina com pai e filho de mãos dadas na exacta direcção de lugar nenhum. A quem é bom, nada de bom acontece… lá vão eles. Um pai que perdeu a bicicleta, o emprego, a coragem e o rosto. Mas, no fundo, o final é, diria eu, quase feliz: aos olhos do filho, vermelhos das lágrimas, a dignidade parece ainda intacta. É a única coisa que lhe resta. E a única que vale a pena.
É a história interminavelmente bela das relações entre pai e filho que, com matizes diferentes, vai aparecendo nas telas (poucos não viram a obra-prima de Jim Sheridan, “Em Nome do Pai”, com Daniel Day-Lewis e Pete Postlethwaite). É uma história de amor contada em poucas palavras, porque o amor de um pai raramente precisa de palavras longas. História que se repete, demasiadas vezes, por detrás das portas das casas das nossas terras. Todo o pai que se preze tem uma bicicleta – ou outra coisa qualquer – para mostrar ao filho que não falhará, que este pode contar sempre com ele, que não precisa ter medo. E ao pai que não pode garantir essa bicicleta, resta-lhe enfiar as mãos nos buracos das algibeiras e ouvir as lágrimas do filho a rolar, silenciosas, pelo seu desgosto abaixo. Há poucas coisas piores.
“Deus quis honrar os pais nos filhos”, reza o Ben-Sirá, que, mais adiante, acrescenta, como conselho aos filhos: “O teu amor para com teu pai nunca será esquecido”. Este “nunca” soa a eternidade, a presença constante, nos dias mais necessários, de um valor que funciona como coluna vertebral de qualquer homem que se preze: a dignidade que o pai deixou em herança.
Em nome de São José, o Homem Bom, maiusculamente Bom, e em nome de todos os pais da terra, neste 19 de Março a rebentar para a primavera… E em nome do meu velho, Manuel da Rocha há três meses e cinco dias vizinho de outro Pai. Há dias, desses dias mais distraídos, ou mais tristes, o que vai quase dar ao mesmo, há dias em que basta voltar-me, para lhe dar aquele abraço… o último. É que fica sempre uma última palavra por dizer, um último abraço, um último olhar. Tudo o que se passa a respeito do amor acontece sempre pela penúltima vez.
Pe. Júlio Rocha