Pelo Pe. Teodoro Medeiros
As figuras solenes são terrenos escorregadios: da mesma forma que não é possível fazer um filme sobre Jesus sem defeitos, também não o é acerca do Apóstolo Paulo. Comecemos pelo princípio; Paulo não se chamava Paulo, nem foi Apóstolo segundo o sentido comum dessa palavra. E no entanto… seria imperdoável passar ao lado desses substantivantes.
Se o Nazareno nada escreveu, o caso é bem diferente com Saulo: várias cartas ditadas a um amanuense e assinadas por ele desdobram as suas preocupações, vida e teologia. Fariseu dedicado, estudioso da Escrituras, judeu versado na interpretação da tradição, Saulo perseguiu o movimento dos seguidores de Jesus antes de se converter.
Paulo chegou tarde à fé e isso foi providencial: não fez parte do círculo dos Doze mas parece justo admitir que teve mais influência do que o grupo. Missionário incansável, não trilhou menos quilómetros na doutrina do que os geográficos. Era uma mente sã num coração são; os seus ensaios exegéticos tinham alma e a emoção de quem fora cataclismado pela Graça.
Mas foi também altamente contraditório (e o que pode haver melhor para o mundo do cinema?). O Apóstolo do amor gratuito de Deus pareceu às vezes querer decapitar os seus opositores; o poeta dos valores que constroem a comunidade usou por vezes o flagrante auto elogio para apelar à reconciliação.
Não deveria ser difícil arranjar matéria para um filme sobre Paulo: se se escolher a via biográfica, as peripécias são mais que muitas e os eventos equilibram-se entre o protagonismo e a vitimização mais cruenta. Se se escolhe a via literária, o pensamento, então está-se perante tão somente a sequenciação do ADN ocidental.
É deste ano o filme “Paulo, Apóstolo de Cristo”. Trata-se de uma produção algo modesta, longe do orçamento do filme “A Paixão de Cristo” de Mel Gibson, com que partilha o ator protagonista, Jim Caviezel. O Cristo de Gibson assume aqui as vestes de Lucas, o companheiro que não abandonou Paulo na masmorra de Roma.
Como se depreende do parágrafo anterior, é Lucas a verdadeira estrela da companhia (literal e metaforicamente): propulsor da ação, concretizador do tema (a fé durante a perseguição), é a ele que o nosso olhar se cola e só ele parece dar as respostas necessárias. Aqui, Lucas tende a ser o único sábio que tem poder transformador.
O defeito confirma-se no outro espelho da medalha: Paulo é um mestre velho e cansado, está preso e parece ter perdido a sua chama. Depende-se apenas de Lucas para dar esperança: só ele pode apresentar serviço, só ele pode concretizar o necessário alívio dramático (a resposta ao tema da perseguição é escrever a história da vida de Paulo).
Sem sair do aspeto técnico: não é desta forma que se contam estórias. Lucas poderia protagonizar se se lhe vislumbrasse crescimento emocional, conflito interior perante os dilemas do enredo (até para que o espetador se possa identificar com alguém) e uma transformação definitiva que fosse ou interior ou inserida na sequência causa-efeito dos eventos (consultem-se os manuais para escrita de argumentos).
Não havendo transformação do protagonista, teria de ser ele a transformar alguma coisa. Sendo um filme religioso, não seria consistente não atribuir um papel ativo a Deus, à sua Graça atuante. A Graça atua sim, é verdade, sobre Paulo quando é martirizado, mas não sobre Lucas (que faz curas apenas porque é um médico de exceção).
O defeito é patente: o médico mina o protagonismo da Graça e o de Paulo porque ele é auto-suficiente, por um lado; mas o seu poder é tão limitado (ler independente) que o seu contributo narrativo equivale ao de um navegador solitário que chega sozinho ao seu bom porto. Onde está o seu arco narrativo?
E o Apóstolo dos gentios? Não se parece tanto com o que dele se sabe como com a ideia que dele tivesse alguém que o conhecesse mal: fala pouco e até algumas das frases famosas retiradas das suas cartas parecem mais recitadas que proferidas. Vá lá que a escolha de o mostrar já velho não levou a incontáveis analepses (“flash back”) preguiçosas e cansativas.
De positivo há a assinalar a forma expedita como as cenas se sucedem; a vitalidade do contexto histórico da Roma do incêndio de Nero e da perseguição aos cristãos; a insistência no clima de medo vivido numa época tão perturbadora (e que não pode ser reduzido a uma projeção contemporânea).
Falar sobre Paulo é sempre regressar ao nascer do Cristianismo. Por aí, até faz sentido esta apresentação tão reverencial do Apóstolo dos Gentios: autêntica coluna da primeira missionação e detentor do prestigioso título de primeiro teólogo cristão (ele que escreveu antes dos evangelistas e de todos os outros autores do Novo Testamento).
Mas perdeu-se o rugido do leão na sua juventude e perdeu-se o fio-de-prumo da sua estória: quem foi este homem que primeiro perseguiu e depois se converteu? Enquanto vivia os seus momentos-chave, o que pensava? Como evoluiu? Não são apenas perguntas enviesadas: são as questões fundamentais do caderno de encargos.
Assim como está, “Paulo, Apóstolo de Cristo” tende para o tépido e o esquemático. Não interessado em aprofundar o seu sujeito, vai perder-se em ficções secundárias onde, o leitor adivinhou, o protagonista é Lucas, o médico que cura sem precisar de milagres. É quase doloroso ver este Paulo sorrir ao prefeito romano na sequência do massacre de cristãos: para quê confundir o vermelho com o cor-de-rosa?
Mais valioso continua a ser o telefilme de Roger Young, editado na colecção sobre a Bíblia da Unimundo. Além de narrar Paulo, esse filme não obscurece o facto de existirem curas milagrosas na vida do homem de Tarso. Nem se autodefine como mamífero da fama de Jim Caviezel (sejamos consequentes).