Pelo padre Nuno Pacheco Sousa
Há no Cristianismo uma inegável força no olhar que altera por completo a trama discursiva da vida. E isso pode bem acontecer também na nossa vida, se vivermos a nossa fé de forma fecunda, de forma aberta ao novo, à possibilidade e à conversão que Jesus pode trazer.
Se assim não fosse, certamente não teríamos acesso ao conhecimento da maioria dos relatos evangélicos. Acredito que muito além, mas também muito antes de qualquer palavra que Jesus nos diga, está a sedução do seu olhar, a atração que ele provoca. Se assim não fosse, os discípulos olhariam uma vez mais para as suas redes, para o antigo, para o que lhes deixava de fazer falta ou sentido desde aquele momento. Se não fosse desta forma, certamente o encontro lado a lado com a Samaritana à beira do poço não teria sido tão luminoso, nem para a vida daquela mulher perdida no decurso da vida, nem para o seu povo que a escuta. Se o olhar deste Cristo, capaz de curar, não despertasse a sede de uma vida outra, os 10 leprosos não despoletariam no seu retorno a casa uma caminhada de entusiasmo e de vida nova, mais inclusiva. Mas é preciso ler e reler este olhar, caso assim não acontecesse, aquele único leproso não teria voltado atrás movido por uma incrível comoção que só a gratidão, um coração agradecido por tudo o que foi feito, pode explicar, pode fazer o primeiro passo. Se a forma e a direção do olhar de Jesus para cada um de nós, não fosse tão peculiar, tão única, Zaqueu nunca teria descido daquele sicómoro, nivelando pelo inverso os olhares daquele encontro maior que a estatura moral da vida dele. Jesus traz uma luz insuspeita no olhar, naquilo que expressa e vive, ou não fosse a Transfiguração uma incrível experiência para aqueles três discípulos. Teremos muito a aprender com o deleite de Maria enquanto Marta não descansa de louvar o seu convidado. Ou podemos ainda perguntar ao olhar a esteira desta Quaresma: quem como Jesus, para que na cruz pudesse ainda atrair todos a si, para que possa ainda hoje atrair todos a si.
Um pouco por todos os Açores, vivemos o tempo do Lausperene, onde as comunidades celebrativas vão ao templo fazer exatamente aquilo que fizeram aqueles com quem Jesus se encontrou. É um tempo muito belo, de olhar e de ser olhado, entre preces e agradecimentos. É portanto um tempo capaz de fazer despoletar uma nova atitude perante a vida, perante a vivência deste tempo que nos é dado, perante os extremos desafios pastorais que nos serão propostos, isto claro, se formos capazes de olhar para além da cristalização de culturas e das tradições. Jesus não é, de facto, muito dado a isso.
*Este artigo foi publicado no jornal A Crença