Pelo padre José Júlio Rocha
Vou-me até à Outra Banda/no barquinho da carreira./Faz que anda mas não anda;/parece de brincadeira.
E ali estava eu, provavelmente no último domingo antes do Natal de 1975, digo isso porque estive lá, e tinha sete anos e estava na primeira classe, e é por isso e por mais nenhuma razão que eu digo e repito que foi nas vésperas de Natal de 1975. Tremiam-me as pernas franzinas, sentia um suor incómodo nas palmas das mãos e a garganta a ficar seca com o coração a latejar dentro dela. Subi ao palco, depois de um bom bocado de tempo à espera que os outros miúdos fizessem os seus papéis. Era a festa de Natal da catequese e da escola lá no salão da freguesia
O palco muito iluminado, a sala cheia de criançada, pais e familiares. Quando me apresentei no palco e olhei a plateia vi um bom pedaço de escuro. Centenas de olhos olhavam-me e eu não os via, não sabia de onde vinham todos esses olhares, mas todos os olhares caíram em cima de mim. A sensação foi avassaladora. Tremeram-me as pernas, quase fiz chichi nas calças, atravanquei-me na ansiedade de não saber o que tinha decorado. Era a primeira vez que aparecia em público e um pânico miudinho começou a subir-me pelas pernas acima. Estava na situação de desvantagem: todos me viam, eu não via ninguém. Todos me julgavam, eu não percebia para que lado me havia de virar. Quase me vieram as lágrimas aos olhos, a cara afogueava de calor e vergonha. Disparei então aquele poema de António Gedeão, “Adeus, Lisboa”… fiquei-me apenas pela primeira quadra, tinha mais uma ou duas para dizer e… bloqueei. Fugi para os bastidores como quem foge de um leão perseguidor. Falhei. “Não faz mal”, dizia-me a catequista, alheia à catástrofe da minha alma. Alívio e vergonha. Tinha passado aquele momento pelo qual esperava com medo há vários dias. Mas tinha passado mal. Ninguém ligou nenhuma. O drama que vivi nem vontade de rir deu a ninguém. Outros dramas maiores aconteceram, como o do meu colega que, na hora da sua poesia, começou a choramingar, foi conduzido, quase empurrado pela catequista para o meio do palco e, quando lá se encontrou, naquela solidão abandonada, desatou a fugir aos gritos.
Eram os ossos do ofício do Natal, suprema glória da infância, que começava no dia em que a árvore chegava. Uma lata velha, que jazia todo o ano na prateleira da casa da pia, cheia de pedras toscas, servia de suporte à árvore. Na manhã seguinte nós, os irmãos, penetrávamos pelo mato adentro, tempo frio, céu limpo, ervas ainda a escorrerem o orvalho da manhã, cheiro intenso a terra. Com um caixotinho de cartão, íamos em busca de leivas, matéria-prima indispensável ao presépio. As melhores leivas eram bojudas, fofas, grandes e brilhantemente verdes. Certas pedras ofereciam-nos leivas que nem cabiam nas duas mãos. Do sótão descia o caixote mais maravilhoso das redondezas: fitas, bolas, luzes, imagens, vaquinhas, ovelhinhas, cowboys índios de plástico, guerra e paz, casinhas de papel que nós montávamos com cola “Gina”, a partir de formatos comprados na Casa Bispo. Bolas e fitas vinham da América, juntamente com os presentes de Natal do Padrinho da América, em caixotes que cheiravam à América. A árvore era tosca mas sempre linda. As bolas eram todas de vidro fino, algumas semitransparentes, com estrelinhas brancas, outras vermelhas, azuis, amarelas. As melhores eram quatro bolas gigantes, douradas, vindas da incontornável América. Amédio, o gato, entusiasmou-se. Deu cabo de três e o quarto da árvore de Natal e do presépio passou a ficar fechado, porque a espécie animal que dá por nome de gato doméstico tornou-se, na nossa civilização, um dos mais polémicos adereços de natal. Abria-se o quarto à noite, para rezarmos o terço de joelhos, diante do presépio. O cheiro a criptoméria era intenso e o espírito do Natal sabia a doçura e a canções: “É Natal, nasceu Deus menino, o mundo que era grande tornou-se pequenino”, “entrai, pastores, entrai por este portal sagrado”.
Na noite de 24 para 25, já com o sapatinho em cima da amassaria da chaminé, não se dormia quase nada. Deitados na cama, todos no mesmo quarto, ouvidos à espreita, algum som, uns passos, um rumor. Sussurrávamos até o sono nos vencer, manha adentro, tal era o entusiasmo das prendas que o Menino nos havia de dar. Noite mágica de todos os sentimentos doces.
Na nossa infância o Natal era tosco. Hoje rimos ao rever fotos antigas do nosso Natal de crianças. Poucas fitas, bolas de vidro espalhadas ao deus-dará, presépios simples, ofertas pobres, postais da América onde havia sempre um campanário com neve e uma estrela brilhante, laranjas, tangerinas, trigo e ervilhaca, muito amor por tudo, por todos, por todas as coisas, um ambiente de paz.
O Natal de hoje é estrondoso, magnífico, impressionante. As luzes das ruas das cidades fazem da noite dia; os presépios são cada vez mais complexos, monumentais, fazem-se concursos; ofertas aos pés da árvore fazem colina, monte ou montanha, conforme as posses; há crianças que recebem mais de trinta ofertas, uma engenhosa forma de destruir uma criança; as árvores cegam-nos com a sua cor; Jesus é sempre um menino loiro de olhos azuis, nórdico como o Papai-noel, lindo, sorridente, sempre com aqueles dois dedinhos da mão direita a abençoar não sei quê.
Para o meu coração, o Natal começou a perder magia quando apareceram as primeiras árvores artificiais. Agora quase todas são de plástico, com bolas de plástico, ofertas de plástico, sorrisos de plástico… quantas famílias de plástico.
Um santo Natal, amigos. Mas não se esqueçam da essência: “Não havia lugar para eles na hospedaria”.
*Este artigo foi publicado esta sexta-feira, no Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio