Exortação apostólica sobre a santidade retoma «Bem-aventuranças» como «bilhete de identidade» dos católicos
O Papa Francisco defende na sua nova exortação apostólica, divulgada hoje pelo Vaticano, uma vida cristã “austera e essencial”, centrada nas ‘Bem-aventuranças’ propostas por Jesus nos Evangelhos.
“Jesus sublinha que este caminho vai contracorrente, a ponto de nos transformar em pessoas que questionam a sociedade com a sua vida, pessoas que incomodam”, escreve, na ‘Gaudete et Exsultate’ (Alegrai-vos e Exultai).
A terceira exortação apostólica do pontificado recorda as “inúmeras pessoas” que foram e são perseguidas “simplesmente por terem lutado pela justiça” e vivido os seus compromissos “com Deus e com os outros”.
“Numa sociedade alienada, enredada numa trama política, mediática, económica, cultural e mesmo religiosa que estorva o autêntico desenvolvimento humano e social, torna-se difícil viver as bem-aventuranças, podendo até a sua vivência ser mal vista, suspeita, ridicularizada”, admite Francisco.
O Papa convida os católicos a um “regresso” às palavras de Jesus, em particular às ‘Bem-aventuranças’, que apresenta como “bilhete de identidade do cristão”.
“Estas palavras de Jesus, não obstante possam até parecer poéticas, estão decididamente contracorrente ao que é habitual, àquilo que se faz na sociedade; e, embora esta mensagem de Jesus nos fascine, na realidade o mundo conduz-nos para outro estilo de vida”, realça.
Francisco recorda os ensinamentos de Cristo sobre a necessidade de um “coração pobre”, que rejeite o “reino do orgulho e da vaidade” ou a arrogância perante o outro.
“Mesmo quando alguém defende a sua fé e as suas convicções, deve fazê-lo com mansidão e os próprios adversários devem ser tratados com mansidão. Na Igreja, erramos muitas vezes por não ter acolhido este apelo da Palavra divina”, assume o Papa.
A ‘Gaudete et Exsultate’ convida a chorar perante os sofrimentos da humanidade, em vez de os tentar esconder, sustentando que a vida “tem sentido socorrendo o outro na sua aflição, compreendendo a angústia alheia, aliviando os outros”.
Francisco fala ainda da justiça, sublinhando que a proposta de Jesus é diferente do que o mundo procura, com críticas a “uma justiça muitas vezes manchada por interesses mesquinhos, manipulada para um lado ou para outro”.
Em linha com várias intervenções do seu pontificado, o Papa sublinha a centralidade da misericórdia e a importância de não julgar.
“A medida que usarmos para compreender e perdoar ser-nos-á aplicada para nos perdoar”, pode ler-se.
O documento chama a atenção para as situações de guerra e para os conflitos provocados pela maledicência de pessoas que se dedicam “a criticar e destruir”, propondo uma “paz evangélica que não exclui ninguém”.
Francisco recorda as vítimas de perseguições religiosas, os “mártires contemporâneos”, bem como os que sofrem com a violência “duma maneira mais subtil, através de calúnias e falsidades”.
Um modelo cristão de felicidade
Na sua nova exortação apostólica, dedicada à santidade, Francisco propõe um modelo cristão de felicidade como alternativa ao consumismo, à pressa e à indiferença face ao outro.
“Se não cultivarmos uma certa austeridade, se não lutarmos contra esta febre que a sociedade de consumo nos impõe para nos vender coisas, acabamos por nos transformar em pobres insatisfeitos que tudo querem ter e provar”, escreve.
A exortação começa por apresentar-se como um “apelo” renovado à santidade como proposta radical de vida.
“O Senhor pede tudo e, em troca, oferece a vida verdadeira, a felicidade para a qual fomos criados. Quer-nos santos e espera que não nos resignemos com uma vida medíocre, superficial e indecisa”, sublinha Francisco.
A terceira exortação apostólica do pontificado defende a necessidade de travar a “corrida febril” da sociedade contemporânea para recuperar espaço para Deus e tempo para os outros.
“Tudo se enche de palavras, prazeres epidérmicos e rumores a uma velocidade cada vez maior; aqui não reina a alegria, mas a insatisfação de quem não sabe para que vive”, adverte o pontífice, que fala na tentação de “absolutizar o tempo livre”.
O Papa considera que esta fixação no próprio ‘eu’ impede o compromisso na ajuda a “quem está mal”.
“O consumismo hedonista pode enganar-nos, porque, na obsessão de divertir-nos, acabamos por estar excessivamente concentrados em nós mesmos, nos nossos direitos e na exacerbação de ter tempo livre para gozar a vida”, insiste.
O texto estende o alerta contra o consumismo à “informação superficial” e às “formas de comunicação rápida e virtual”, que criam um “turbilhão”.
Francisco diz que, nesta sociedade, “volta a ressoar o Evangelho” para oferecer “uma vida diferente, mais saudável e mais feliz”, a santidade.
Esta, explica, não está reservada apenas a algumas pessoas, mas encontra-se “por toda a parte”, nas famílias, no trabalho, naquilo a que o Papa chama como “classe média da santidade”, inclusive “fora da Igreja Católica e em áreas muito diferentes”.
“Para ser santo, não é necessário ser bispo, sacerdote, religiosa ou religioso. Muitas vezes somos tentados a pensar que a santidade esteja reservada apenas àqueles que têm possibilidade de se afastar das ocupações comuns, para dedicar muito tempo à oração”
O Papa elogia os “estilos femininos de santidade” que se manifestaram, ao longo da história, em “tantas mulheres desconhecidas ou esquecidas que sustentaram e transformaram, cada uma a seu modo, famílias e comunidades com a força do seu testemunho”.
A ‘Gaudete et Exsultate’ recomenda a santidade dos “pequenos gestos”, que impede de falar mal dos outros, olha para o pobre e reserva tempo para a oração.
O Papa elenca “grandes manifestações do amor a Deus e ao próximo” que devem contrariar uma cultura marcada pela “ansiedade nervosa e violenta”, “o negativismo e a tristeza” ou o individualismo, rejeitando “tantas formas de falsa espiritualidade sem encontro com Deus que reinam no mercado religioso atual”.
Francisco convida a “permanecer centrado, firme em Deus” e a evitar a participação em “redes de violência verbal através da internet”.
“Mesmo nos media católicos, é possível ultrapassar os limites, tolerando-se a difamação e a calúnia e parecendo excluir qualquer ética e respeito pela fama alheia”, adverte.
O Papa sublinha, ainda, que um santo não gasta as suas energias a “lamentar-se dos erros alheios” e evita “a violência verbal que destrói e maltrata”.
“O santo é capaz de viver com alegria e sentido de humor. Sem perder o realismo, ilumina os outros com um espírito positivo e rico de esperança”, acrescenta.
O texto elogia a “ousadia” nas comunidades católicas e diz que a santificação é um caminho comunitário, “contra a tendência para o individualismo consumista que acaba por isolar, na busca do bem-estar à margem dos outros”.
A exortação apostólica, forma de documento menos solene que as encíclicas, é um texto pontifício de índole catequética.
Francisco usa citações de vários Papa, autores cristãos e conferências episcopais, bem como, entre outras obras, os “Relatos de um Peregrino Russo” e até recomenda a oração atribuída a São Tomás Moro: “Dai-me, Senhor, uma boa digestão e também qualquer coisa para digerir. Dai-me a saúde do corpo, com o bom humor necessário para a conservar. Dai-me, Senhor, uma alma santa que saiba aproveitar o que é bom e puro, e não se assuste à vista do pecado, mas encontre a forma de colocar as coisas de novo em ordem. Dai-me uma alma que não conheça o tédio, as murmurações, os suspiros e os lamentos, e não permitais que sofra excessivamente por essa realidade tão dominadora que se chama “eu”. Dai-me, Senhor, o sentido do humor. Dai-me a graça de entender os gracejos, para que conheça na vida um pouco de alegria e possa comunicá-la aos outros. Assim seja”.
E deixa as Bem-aventuranças da Santidade: Ser pobre no coração: isto é santidade. Reagir com humilde mansidão: isto é santidade. Saber chorar com os outros: isto é santidade. Buscar a justiça com fome e sede: isto é santidade. Olhar e agir com misericórdia: isto é santidade. Manter o coração limpo de tudo o que mancha o amor: isto é santidade. Semear a paz ao nosso redor: isto é santidade. Abraçar diariamente o caminho do Evangelho mesmo que nos acarrete problemas: isto é santidade.
(Com Ecclesia)