Palavras em vias de extinção

Por Pe Júlio Rocha

O televisor, hoje, é um rectângulo liso e achatado, com uma definição longe de ser imaginada há 40 anos. Nesse tempo, pela primeira vez, olhei aquela máquina arredondada, com fórmica e botões redondos, a zurzir imagens imprecisas, acidentadas, cobertas de moscas. E nós sem conseguirmos perceber como diabo não havia ninguém por detrás daquilo! Hoje tudo mudou. Foi o progresso.

Aproximo-me, agora, de um desses aparelhos novíssimos. Com o sacratíssimo telecomando, abancado na poltrona, aproximo todo o mundo de mim. Posso escolher o mundo em mais de cem canais. Tudo o que quiser… Progresso.

Escolho um canal de notícias. Notícia: o valor do barril de petróleo Brent subiu hoje mais de 4% no mercado. Provavelmente uma boa notícia para Angola e companhia… Antes de me perguntar porquê, o televisor atira-me a resposta: bombardeamentos da Arábia saudita e dos EUA e aliados a alvos xiitas no Iémen e os receios de crise nos barris… mais de 20 mortos. Sendo que os 4% são infinitamente mais importantes do que os 20 estranhos iemenitas estoirados pelas bombas… Progresso.

Quando era teenager semiconsciente tinha um amigo – daqueles amigos estranhos que passam a vida a ler e a fazer perguntas insuportáveis – que me acusava de a Igreja ser contra o progresso. Lançava-me à cara Galileu, a Inquisição, os padres que ainda falavam dos pecados e do inferno, as problemáticas em torno de questões bioéticas e do sexo, a Igreja a desdenhar a emancipação da juventude e, sobretudo, a Igreja a não apontar para o futuro, o progresso dos povos, a luta contra a pobreza, a aposta no avanço das tecnologias, na ciência, nos empreendedores que criavam postos de trabalho. Em suma, qual novo positivista comtiano, marcava poderosamente a firme certeza de que o tempo da Igreja estava a acabar e a Nova Humanidade não precisava dela para desembocar num futuro de risonha felicidade… Paladino do progresso.

Reencontro-o, por agora, despaladinado… a barba cinzenta e cansada como os olhos; os olhos tristes como a boca; a boca caída como as maçãs do rosto. Uma cansada tristeza a cair pelo seu corpo todo abaixo, uma espécie de berro por socorro no silêncio dos seus gestos, forçados a aceitar o absurdo de ser mais uma vítima do progresso. Sem trabalho e já sem família, esse humanista sonhador já só consegue acreditar na possibilidade de ter mais uns tostões que lhe apaziguem as dívidas, ver os filhos de vez em quando, não ser abandonado por si próprio.

Há dias, no fim do ano passado, qualquer coisa relacionada com a Google anunciava as palavras novas aparecidas em 2014; uma revista apresentava os termos mais usados nesse ano, desde “corrupção” até “crise”. Acho que deviam também fazer uma lista das palavras em vias de extinção. Progresso, provavelmente, é uma delas. Porquê? Não sei. Mas acho que nos instalámos. Sentámo-nos nas nossas poltronas com os comandos que o progresso nos deu e deixámo-lo – ao progresso – em mãos alheias… muito alheias. Assistimos, impávidos, serenos, curiosos, preocupados, alarmados e, agora, em pânico à metamorfose do progresso em dinheiro. Progresso e dinheiro caminhavam de mãos dadas, depois o progresso foi parar às mãos de quem tinha dinheiro. Depois o dinheiro passou de primo a irmão do progresso. Então, dinheiro e progresso, hoje, são quase a mesma coisa. Nunca o mundo foi tão desigual como o é agora. Exactamente o contrário daquilo que Paulo VI pedia na imensa “Populorum Progressio”.

Não sei se, neste momento, o número de mortos no Iémen já subiu para 21 ou 30. Não desceu. Nem sei se os 4% já subiram para 5 ou 6… Sei que o “progresso” decidiu – com o magnânimo consentimento da nossa passividade – que a percentagem do petróleo é mais notícia do que a morte dos seres humanos, por mais xiitas que sejam. E decidiu também que o meu amigo anticlerical ficasse do lado de fora.

Ah! Outra palavra em vias de extinção: “à desbancar”, mais do que palavra, é uma expressão popular desta terra e de outro tempo, que significava, mais ou menos “estou muito bem”. Já poucos a usam. Não há muitas razões para isso.

 

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