Pelo padre José Júlio Rocha
O cemitério do Porto Martins fica nas encostas do célebre Pico Capitão, aquele chapéu que preside às altitudes da freguesia e que tem paisagens de uma beleza açoriana. Situado, à vontade, a uns bons mil metros da igreja, entra-se por uma canada adentro e estamos no cemitério, pequenino e maneirinho, um misto bem conseguido entre os cemitérios anglo-saxões, cheios de relva, e os cemitérios latinos, com as suas campas artísticas.
Já lá vão uns dez anos e eu ainda não paroquiava por aquelas terras. Fui fazer o funeral de uma pessoa amiga. Terminadas as exéquias, com muita gente, peguei na estola e na alva e abalei, canadinha fora, em direção ao automóvel. O dia estava lindo, um sol brilhante num céu tão azul como só nestas ilhas. Mas, do lado da Serra do Cume, levantavam-se umas nuvens de um cinzento azulado, compactas e ameaçadoras, levantando-se, qual lenta avalanche de neve, por sobre a serra, preparando-se para desabar sobre o mundo. Ultrapassei lentamente dois velhotes, devidamente aperaltados com os seus chapéus e casacas puídas, que olhavam pachorrentamente o que se desenrolava no cume da Serra do Cume.
– Vem aí trabuzana – declarou um deles.
Já não ouvia aquela palavra havia uns bons pares de anos e achei uma graça que me fez pensar noutras palavras usadas em tempos de infância e que foram perdendo a validade, seja porque o português mais universal se foi impondo, palavras novas que chegavam e velhas que partiam, seja porque o desuso também atinge as palavras. Trabuzana quer dizer tormenta, e existe no dicionário. Muitas vezes ouvi a meu pai, quando estávamos a pedi-las: “vai haver trabuzana”…
Quantos termos populares pertenciam à nossa infância e hoje permanecem no silêncio, que é a morte das palavras? É um massame delas. E massame queria dizer muito, como quando a mesa estava cheia de comida, massame de iguarias, e, depois da refeição, só ficavam massagadas em cima da mesa, que a mãe limpava com um frangalho. Na canada, jogávamos aos triques, coisa que já não se faz, porque já não há canadas para as crianças. Tínhamos bolas, olhinhos e marrões. Terminado o jogo, alguns de nós penetrávamos no mato para além da canada, toca a atripar muros e paredes, roubar uvas ou maçãs na banda do vizinho e toca a fugir, não fôssemos nós apanhados e, mais cedo ou mais tarde, apanhar uma surra, uma escarduça. Daí era só um tirinho até à casa dos avós, e lá estava o José da Rocha, ao velho portão da velha casa, a saudar o tio Mateus Leal com um “haja saúde, como é que vai isso”, e recebendo, como resposta, um “home, tou à desbancar.” A conversa continuava com um “sabes quem é que está aborrecido? É fulano de tal, que tá doente em casa. Ainda antonte tava pairado, mas onte deu um trompaço e caiu da chésse abaixo.” O termo “aborrecido” tinha, como o “atrapalhado”, uma polissemia interessante. Dizer que uma pessoa está aborrecida ou atrapalhada era dizer que está mal, doente, por exemplo. Mas dizer que tal pessoa é aborrecida ou atrapalhada era afirmar, eufemisticamente, que não prestava para nada.
Nesse tempo, distinguir tolos de descretos tinha mais a ver com o coeficiente intelectual do que com o comportamento do fulano. É que um home, mal se porcata, é enganado por qualquer tatão que passe por descreto.
Os estrangeirismos do outro lado do Atlântico invadiam e ainda invadem o nosso linguajar. Quem é que prefere uma pastilha elástica da linha de Cascais a uma gama da Terceira? Ou um casaco a uma samarra, ou uma malha a uma suera ou um plôver? Quem compra um alguidar de plástico em vez de uma pana, quem prefere a esfregona ao mapa para limpar o chão? A frisa ainda arrefece mais do que o congelador. E ainda me lembro da clauseta ser mais comum do que o armário e a talaveija mais do que o televisor. Era aí que, aos sábados pela manhã, no canal americano, víamos macaquinhos a comer uns candins da Base.
Dizia-se que, para os lados do Recanto, havia uma casa de valhacas, cheia de mangalhas. Alguns, mais afoitos, iam provocar as senhoras, atirando pedrinhas às janelas e fugiam diante das diatribes das inquilinas: “Raspem-se vocês daqui pra fora, coirães!” E, enquanto fugiam, havia sempre um que ficava mais para trás e os outros gritavam: “maneia-te”.
À noite, na cama, os irmãos a conversar e meu pai com sono: “acaçapem-se vocês, plamordês!” E a gente não se acaçapava. Meu pai subia as escadas para o sótio (sótão) onde estávamos deitados e ameaçava: “qual é o primeiro que vai levar uma tapona?” Éramos ainda pechinchinhos.
Apesar de os cães e os burros serem animais de sangue quente, o terceirense insiste em dizer que está frio c’ma cão ou c’ma burro, atentando despudoradamente contra a integridade térmica dos referidos seres vivos.
Um home com’é dade tá sempre amodes de dizer coisas descretas. E deve ter sido um home com’é dade que inventou o dito terceirense que mais se encaixa na nossa maneira de ser, o provérbio mais nosso, aquele que melhor nos define na forma de encarar cabalmente a existência: “gente tola e toiros, paredes altas.” Tal disparate.
(Este texto foi publicado na edição de sexta-feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio)