Pelo Padre José Júlio Rocha
Alguns dos momentos mais gratos da minha infância estão relacionados com a apanha de milho em terras de meu avô. Era uma aventura. Os cerrados ficavam lá para a ponta de cima da freguesia, escondidos da estrada, quatro cerrados ao todo, onde o milho crescia livre e ordenado. A apanha era um dia de festa. Chegava o carro de bois e íamos ao lado dele, uns a apanhar as socas de milho e a atirá-las para dentro da sebe do carro, outros a cortar os milheiros pelo pé e a deixá-los aos molhos para depois se fazerem os marouços que pontuariam, um aqui outro ali, no meio dos campos. A miudagem da minha idade, 6, 7, 8 anos, entretinha-se a esticar os braços até às socas, a arrancá-las, a atirá-las, uma a uma, para dentro do carro de bois, e a apanhar os grilos que viviam no meio dos campos, a metê-los dentro de uma caixa a ver se cantavam. Calavam-se e a gente não tinha outra solução senão libertá-los, atordoados, no fim da faina. Ainda hoje não percebo porque é que gostávamos de apanhar grilos e fugíamos das baratas.
O regresso era a festa, semelhante às entradas apoteóticas dos exércitos vencedores pela Via Triunfal da Roma dos imperadores. Eu e os outros miúdos éramos atirados para cima do milho bem calcado dentro da sebe do carro de bois que descia, lento e a gemer, o caminho principal da freguesia, altivos a gozar aquela meia hora de viagem, o momento glorioso da jornada. Abóboras e mogangos faziam-nos companhia no trono do carro, lá nos píncaros da viagem, e nós a olhar, sobranceiros, o mundo que passava ao lado, lá em baixo, e nos olhava com curiosidade.
Depois vinha a desfolha. Arregaçávamos duas ou três folhas de milho da soca e atirávamo-la para um monte onde dois ou três homens as juntavam em grupos de 24, dobravam as folhas arregaçadas, amarravam-nas firmes com espadão e faziam uma cambada que, mais tarde, era dependurada na burra de milho, outra instituição extinta na nossa terra.
A sementeira também era entusiasmante. E eu adorava estar ao lado do meu avô, a deitar os grãos de milho nos regos abertos por um arado, a tapá-los com a enxada e a ver a terra, húmida e castanha, a cheirar a natureza pura.
Foi na preparação de uma dessas sementeiras que assisti a uma cena que ainda hoje me perturba. No cerrado acima dos do meu avô, outro homem já tinha semeado o seu milho e estava a gradar a terra. Uma enorme grade, com um enorme pedregulho em cima, para ficar mais pesada, era puxada por um cavalo magro e esquelético, fraco demais para tamanha tarefa, avançando aos impulsos e muito lentamente. O homem já há muito tinha perdido as estribeiras e vociferava, feroz, palavrões contra a pobre besta que se esvaía em esforços inúteis para avançar mais depressa. O dono zurzia com pausada raiva um bordão sobre as ancas e o lombo do animal que, a cada pancada, avançava mais uns centímetros e se amassava mais uns decímetros. Até que o cavalo parou, estremecendo, resfolegando, vencido. O homem não cabia em si de raiva. Pegou numa pedra, ainda grande, com a mão direita, e desferiu-lhe uma boa dúzia de pancadas violentas no pescoço e na cara. A cada pancada o cavalinho abaixava, com espasmos, as patas traseiras, até que se amassou de vez, prostrado por terra, perante a violência do dono. Sem um gesto de repulsa ou revolta, baixou a cabeça sangrante e para ali se ficou, derrotado. Meu avô tentava esconder a cena dos meus olhos. Puxou-me para dentro do palheiro e foi falar com o homem.
A cena marcou-me. E, desde pequeno, tenho vindo a pensar muitas vezes na dimensão desconhecida da maldade humana. Até que ponto pode descer um homem na sua maldade contra os animais ou os seres humanos?
Dos muitos filmes da minha vida, “A Lista de Schindler” ocupa um lugar de relevo. Já o vi mais de dez vezes e choro sempre, acompanhado pela música de uma beleza pungente e profunda. Auschwitz, por onde passei há seis anos, é um dos melhores laboratórios do mundo para medir as profundezas da maldade humana. Não tem fundo. Se não houver um Deus, uma lei, um poder que nos proíba de fazer o mal; se nos sentirmos impunes, sem castigo, sem remorsos, sem nada que nos diga quando parar, nós, os homens, somos capazes de façanhas incrivelmente desumanas. A maldade não tem fundo quando não há referências.
Uma ideia que me mete medo é a de que os homens, no fundo, não crescem, continuam como crianças rebeldes que, se não tiverem uma vara ao lado, fazem todas as maldades possíveis. A consciência dos valores é muito volátil e um homem só se torna homem quando faz o bem e evita o mal segundo os ditames da sua consciência e não porque a lei o obriga. Não são muitos.
O desrespeito impune pela dignidade humana que, todos os dias, enche os nossos ecrãs, é o prelúdio de uma civilização que se vai degradando.
*Este texto foi publicado na edição desta sexta feira do Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio.