Pelo padre Emanuel Valadão Vaz*
Foi há 30 anos que conheci mais de perto o padre Cipriano Franco Pacheco (irei daqui para a frente chamá-lo simplesmente Cipriano).
Nessa época o Cipriano fazia parte de um grupo de padres que punha em sentido as autoridades civil e religiosa. Esse grupo era denominado GRAP (Grupo de Reflexão e Ação Pastoral). Entre vários padres que faziam parte deste grupo, para além do Cipriano, constavam nomes como Manuel Pimentel, António Cassiano, Otávio Medeiros e Silvino Amaral, este o único dos cinco que permanece entre nós.
Habituei-me a ouvir falar do GRAP no seminário, na maior parte das vezes era referido como um grupo de pressão junto do Bispo, na altura D. Aurélio. O certo é que aquela forma de pensar e agir do GRAP despertou-me o desejo de um dia poder conhecer o grupo de padres que inquietava pela positiva a vida da nossa Diocese e inclusive a vida política.
O interessante é que desde o primeiro encontro que tive com os padres do GRAP, em 1992, estava eu na etapa final do seminário, identifiquei-me muito com aquela forma de refletir e das suas tomadas de posição sobre os acontecimentos eclesiais e civis à luz do Evangelho e do Ensino Social da Igreja, iluminadas, igualmente, com os ensinamentos saídos das Constituições do Concílio Vaticano II.
Mas aquilo que me fez conhecer mais a fundo o Cipriano foi sem dúvida a espiritualidade do Prado (O Prado é uma Associação de padres seculares cuja espiritualidade assenta no conhecimento de Jesus Cristo, através do estudo do Evangelho, que se fez pobre e se identificou com os mais pobres).
A espiritualidade do Prado foi o instrumento que mais me aproximou do Cipriano. São muitas as vivências com ele “made in” Prado.
Antes de eu conhecer o Cipriano já ele me conhecia, pelo fato de ele ter sido colocado na paróquia de Santa Cruz na Praia da Vitória, em 1970 e muitas vezes passar pela Vila Nova, minha terra Natal, onde também parava na casa de meus pais. Recordo-me dele dizer várias vezes “Eu quando ia a casa da senhora Maria Inácia (falecida no mesmo ano e mês do Cipriano) lá estava o Emanuel a arrastar a fralda pelo chão”. Era eu bebezinho e ele estava no início do seu ministério.
Há um dado curioso de datas nós os dois. No ano que eu nasci para o mundo o Cipriano foi ordenado sacerdote, ou seja, em 1969. Inclusive, no ministério sacerdotal paroquiei onde o Cipriano tinha passado anos atrás, mais concretamente na paróquia da Salga, ilha de S. Miguel, ou ainda, como Assistente do Movimento Católico de Estudantes (MCE). Em ambas pude usufruir dos frutos que brotaram das sementes lançadas pelo Cipriano.
Voltando ao Prado. O Cipriano tinha a grande capacidade de conciliar a sua enorme sabedoria com a arte do bom humor e da simplicidade. Mas aquilo que eu mais apreciava nele era a frescura e novidade no exercício do estudo do Evangelho. Muitos foram os encontros onde pude escutar os comentários escritos, sempre, que o Cipriano partilhava nas equipas do Prado ao longo destes últimos 30 anos.
O Cipriano cultivava o espírito do não comodismo que se traduzia pelos seus frequentes passeios a pé onde quer que estivesse e da necessidade de sair da ilha para ir ao encontro de outros ares que o ajudavam a elevar a sua sede de conhecimento. Ele era um amante da música que elevava o espírito, que faz subir ao céu sem perder o sentido da terra. Tinha um fraquinho pela música francesa, nesse campo e noutros era um francófono. Muitas foram as traduções de textos do francês para o português, orações, entre outros, e muitas foram as adaptações musicais que nos deixou.
A ligação do Cipriano aos padres do Prado, trouxe-lhe uma relação muito forte com a França e mais concretamente com a cidade de Lyon, onde se encontra a casa mãe do Prado, habitualmente conhecida como o 13 (número da porta da casa). Em França fez o «ano do Prado», para além de muitos encontros internacionais e algumas Assembleias Internacionais em que participou como delegado do Prado de Portugal. No Prado de Portugal foi coordenador nacional e acima de tudo grande animador do carisma do Prado, principalmente junto dos padres mais jovens.
O Cipriano esteve sempre muito encarnado na vida eclesial da Diocese de Angra. Umas vezes de forma mais ativa outras mais na retaguarda, mas sempre muito atualizado sobre o estado da Diocese e dos seus ritmos.
Ainda hoje me admiro como ele assumiu tantos cargos de relevo na Diocese. Habitualmente gostava de estar na última fila. Mas ao chegar-se à frente, porque chamado a tal e em espírito de obediência, lá estava ele a assumir de forma sábia e perspicaz a tarefa a que fora chamado.
Apesar de muitas vezes “barafustar”, necessitava de ser espicaçado para despertar o que de melhor ele tinha para que todos nós usufruíssemos da riqueza que jorrava do seu interior. A sua reflexão e ação não se limitou à esfera eclesiástica, percorreu lugares da cidadania, principalmente no ensino público como docente, com uma ligação forte ao mundo universitário.
Um momento marcante foi aquele que vivi com o Cipriano na sua última viagem, no passado mês de julho. Mais uma vez, a última vez, ligada ao Prado, desta feita em Palmela, numa formação para formadores. Ele foi sempre um formador. Muitas foram as gerações que tiveram a oportunidade de conhecer o homem, o professor, o diretor espiritual.
Essa foi a viagem da despedida, do último adeus aos amigos do Prado, do último adeus à sua prima Carmélia, religiosa que se encontra na cidade do Porto, já acamada faz algum tempo. Aliás, esta era uma visita obrigatória do Cipriano quando ia a Portugal Continental. Quanta alegria foi aquele encontro. Na fragilidade de saúde de cada um deles surgiram sorrisos e palavras de grande alegria. Há momentos que são eternos.
Voltando ao encontro do Prado em Palmela, diocese de Setúbal. O Cipriano concentrou todas as suas energias para acompanhar todos os trabalhos ao longo de cinco dias. Foi de um grande estoicismo, mas acima de tudo para afirmar que estava ali para colaborar até ao fim com a formação no Prado. Esqueceu-se de si próprio para se aventurar na máxima entrega, de dar a vida por amor até ao fim.
Ainda, a respeito da última viagem, quis passar pela ilha Terceira, onde tantas memórias lhe ficaram marcadas. Para além de ver os amigos, padres e leigos, também teve a oportunidade de comer na Vila Nova, abundantemente, as sopas do Espírito Santo. Eu próprio fiquei surpreso quando ele pediu para repetir. Foi um regalo vê-lo comer com tanto gosto.
O Cipriano percebeu no seu interior, sem nunca transparecer nada, que esta era a sua última viagem. Como foi bom poder acompanhar o Cipriano nesta sua última viagem. Ver a sua alegria, mesmo no meio de algum sofrimento e debilidade. Como foi bom ver o Cipriano fazer o que tanto gostava de fazer, viajar com o propósito de abraçar o que tanto amava. Era um apaixonado pelo conhecimento e pelo conhecimento de Jesus Cristo. Os seus estudos do Evangelho assim o confirmam, mas também com humildade penitenciava-se do pouco tempo que dedicava a esse estudo, pois o compromisso de um pradosiano é estudar o Evangelho em cada dia como o seu primeiro trabalho.
O seu rosto menineiro, as suas frases emblemáticas e bem dispostas, a sua capacidade de brincar e de nos fazer rir são outras das caraterísticas deste homem que foi chamado de uma pequena terra do concelho do Nordeste, S. Pedro Nordestinho, para ser um discípulo/apóstolo do Mestre Jesus Cristo, que o empurrou para a universalidade.
A família mais próxima do Cipriano, o seu irmão José Maria, a sua querida sobrinha Sofia e seu marido, bem como as sobrinhas netas Benedita e Julieta presenciaram, não só mas também nestes últimos tempos de maior provação, até à partida final, quanto o Cipriano era querido e as marcas que deixou impressas na vida de tantas pessoas.
Finalizo relembrando aquela expressão que o Cipriano dizia tantas vezes quando se despedia de alguém “Força p´raí”.
*O padre Emanuel Valadão Vaz é, atualmente, o coordenador dos padres do Prado em Portugal.