Os três encontros deste ano propõem reflexão sobre a igreja, os leigos e os padres que queremos para o século XXI
Quais são os maiores problemas da Igreja nas nossas ilhas? O que é que a sociedade Açoriana precisa da nossa Igreja? Que padres para este tempo? Assim, de rajada, nestas três questões sintetiza-se o essencial da intervenção do padre Emanuel Valadão Vaz, cuja reflexão inaugurou esta segunda-feira os III Encontros de reflexão Espiritual Ecológica, tema que dá mote à Escola Cristã da Ouvidoria da Praia para o inicio deste ano pastoral.
Durante quase uma hora, o sacerdote, que é ouvidor há quatro anos, procurou traçar o itinerário deste caminho sinodal que a Igreja propõe quer em termos diocesanos quer em termos da Igreja Universal, centrando a sua atenção no diagnóstico da realidade social e eclesial dos Açores.
A partir de uma apatia diagnosticada, a necessitar de um “empurrão” e “motivação”, o padre Emanuel Valdão Vaz sublinha a necessidade da Igreja ser capaz de encontrar estratégias para retomar a energia de “outros tempos”, nomeadamente de há 30 anos, quando a diocese viveu o Congresso de Leigos entre 1989 e 1992.
“Sem querer ficar demasiado agarrado ao que está para trás, não posso deixar de dizer que o nosso pequeno “concílio diocesano” foi um dos maiores exercícios de sinodalidade, ou seja de caminharmos juntos, vividos no todo da nossa diocese”.
O sacerdote lamentou que muito deste entusiasmo se tenha perdido.
“Parece que ficamos sem saber o que fazer com aquele tesouro que Deus nos colocou nas mãos. Temos que pedir perdão a Deus, a todos os que se entregaram de corpo e alma àquele projeto, falo claramente de tudo o que foi feito com o Congresso de Leigos, e depois viram-no praticamente ser arrumado na gaveta”, lamentou.
Por isso, referiu: “Impõe-se agora saber como estamos na nossa caminhada, enquanto cristãos que se alimentam do Pão da Palavra, do Corpo de Cristo e da vida que acontece neste mundo, onde Deus continua a construir o seu Reino”.
“Mais do que parecer que estamos a navegar no mar da sinodalidade, interessa-nos, isso sim, perceber as várias experiências vividas que entretanto fermentam este trabalho em conjunto, bem como o rumo a tomar e o porto aonde queremos aportar”, sublinhou ainda destacando que “há muito por percorrer”.
E deixou sugestões: “Ir mais além nos laços que nos ajudam a quebrar as fronteiras paroquiais; ir mais além nos projetos comuns para uma pastoral atenta às riquezas e pobrezas espirituais, humanas, sociais; ir mais além no conhecimento de Jesus Cristo, para sermos uma Igreja mais fiel…Ir mais além a tantas outras coisas no nosso trabalho em conjunto. É um grande desafio que continua presente”, disse.
Procurando sintetizar o que foram as respostas dadas pelas estruturas locais aos diferentes instrumentos de trabalho saídos da cúria e enviados para as ouvidorias, para serem trabalhados a nível paroquial.
Entre os “sinais” recolhidos a primazia vai para a catequese, “que é uma grande preocupação” sobretudo na infância, na adolescência e na juventude.
“Há, sem dúvida, uma falta de entusiasmo dos mais novos para participarem e se comprometerem, quer na eucaristia, quer nas várias formas de servir a comunidade com a orientação que lhes vem do seu batismo. Esta realidade vem de longe e agrava-se cada vez mais” reconheceu, ao destacar a perda populacional da ouvidoria e a queda de dinamismo dos grupos de jovens, muito por causa da pandemia.
“Sem dúvida que o trabalho com os mais novos precisa de ser levado mais a sério. Não podemos continuar a empurrar para a frente”.
“Os itinerários catequéticos, principalmente na adolescência, não estão, faz muitos anos, a proporcionar o verdadeiro encontro com Jesus Cristo”, disse avançando com a ideia de que “precisamos de uma catequese que possibilite a experiência de uma fé ativa, eficaz, que os faça ter gosto de estar, que aí descubram a sua humanidade e a necessidade de uma vida menos fechada e mais generosa”.
“Precisamos não só de uma mudança de estrutura como também de mentalidades, que possam colaborar nesta alteração. Precisamos de nos sentar e refletir sobre como vamos percorrer este processo de mudança”, disse ainda.
Por outro lado, salientou a importância de aceitar a diversidade.
“Estabelecer uma unidade na diversidade não anula ninguém, antes enriquece e promove a fraternidade e o bem comum” disse deixando uma questão: “Como queremos renovar a nossa Igreja se temos uma barreira enorme por vencer. Temos muita dificuldade em criar consensos a partir da nossa diferença”.
O sacerdote deixou mesmo uma provocação: “Afinal quem é que governa a Igreja, quem a dirige?” para de imediato responder: “Enquanto não assumirmos que apenas somos colaboradores de algo que não é nosso, como seja a Igreja, então teremos sempre muita dificuldade em estarmos numa atitude de escuta e de acolhimento de tudo o que vem de fora, daquele ou daquela que até tenho dificuldade em entender e aceitar”.
“Possibilitar a nossa participação é uma forma de valorizar o que é construído em conjunto, mesmo que não seja bem aquilo que eu preciso neste momento. Precisamos de nos envolver para irmos aperfeiçoando esta forma de viver em conjunto. Mas precisamos de estar para poder vivenciar, avaliar, discernir e fortalecer o caminho percorrido em conjunto”, concluiu.
O sacerdote apontou ainda para a primazia da Palavra de Deus que deve ser “mais escutada e estudada”.
“A Palavra de Deus ainda está longe de ter para nós um uso normal no nosso dia a dia. Porque é que nós não sentimos necessidade de ter um contato próximo com a Palavra de Deus? Falta-nos gosto? Falta-nos alguém que nos explique as escrituras?” referiu ao lembrar o esforço que tem sido desenvolvido pela ouvidoria para formentar os momentos de reflexão e oração a partir da Palavra de Deus.
“Uma pastoral sem a Palavra de Deus torna-se vazia e sem sentido, porque falta o motor e a razão da nossa ação, que é Jesus Cristo. Tudo o que fizermos, que seja por referência a Jesus Cristo. Para isso precisamos de conhecê-lo, para o vivermos, segui-lo e anunciá-lo. Sem o estudo do Evangelho torna-se ineficaz”.
“Sem dúvida, muitos cristãos vivem hoje a sua fé sem conhecerem o grande projeto que Deus tem para mudar o mundo a fim de tornar possível uma vida mais humana” denunciou o sacerdote alertando para o risco de confundirmos a verdadeira essência do que é ser cristão.
“Este Reino de Deus não é uma religião. É muito mais. Vai além das crenças, preceitos e ritos de qualquer religião. Se de Jesus nasce uma nova religião, como de facto sucedeu, terá de ser uma religião ao serviço do Reino de Deus”, disse destacando a importância de se “recuperar a centralidade de Deus”.
O padre Emanuel Valadão Vaz lembrou ainda a necessidade de uma pastoral mais interveniente não só ao nível material mas também no “acolhimento e do acompanhamento”.
“Na nossa Ouvidoria (…)falta-nos dar passos para uma abertura e ação não só no campo material, mas também de acompanhamento” referiu frisando a existência de iniciativas que estão para além da Igreja e que devem ser consideradas.
Nos dois últimos pontos da intervenção referiu-se aos leigos e aos padres.
Sobre os primeiros lembrou a importância de estarem no mundo, nos seus ambientes; sobre os sacerdotes sublinhou a necessidade de uma vida espiritual “fundamentada na intimidade com Jesus”, através da oração e enumerou algumas das fragilidades que os sacerdotes enfrentam: “Não rezamos o suficiente, caímos num ativismo desordenado (…)e, quando temos tempo, perdemo-lo em distrações que nos agradam, deixando a oração para segundo plano”. Apontou a solidão, como “Um dos maiores desafios do padre de hoje”.
“Vivemos sós. Em muitos casos encontramos algumas famílias que nos acolhem, algumas “Betânias”, mas isso não é suficiente. A solidão manifesta-se sobretudo no facto de não termos família, de vivermos mais sós do que nunca, nos momentos em que nos sentimos incompreendidos, mas também no facto de não sabermos rezar a nossa solidão. Já todos compreendemos que o maior obstáculo a viver o celibato não é a sexualidade mas o facto de não termos companhia, alguém que nos compreenda e abrace ao fim do dia, alguém que tenha um lar que nos acolha, nos receba, abrace o nosso cansaço. Jesus devia ser essa companhia e esse abraço, mas não o é fisicamente e, nos momentos de fraqueza e desilusão, abraçar o vazio é inquietante”, afirmou. Ainda a propósito do clero referiu-se ao “desencanto”, “padres tristes, sem entusiasmo e resignados”, que “sobrevivem a igrejas vazias”; mas também outros que se confortam com “o ritualismo vazio, em cerimónias pomposas e nas ornamentações das Igrejas”.
“Proximidade”, “acolhimento”, “fraternidade” constituem por oposição o itinerário de um sacerdote que se configure e configure a sua vida a Cristo.
Esta primeira conferência de uma série de três, marca o arranque da formação na Ouvidoria da Praia da Vitoria, que semanalmente tem dois momentos sempre de oração e meditação da palavra de Deus.