Por Carmo Rodeia
Revi por estes dias o filme Mar Adentro, que foi premiado melhor filme estrangeiro em 2005, salvo erro. O filme, que tem como atores principais Javier Bardem e Belén Rueda, conta a história de Ramón Sanpedro Cameán, um galego que aos 25 anos ficou tetraplégico na sequência de um acidente ocorrido no momento em que deu um mergulho no mar. `Condenado´ a viver numa cama, Ramón inicia, logo após tomar conhecimento do diagnóstico médico, uma luta pela conquista do direito à eutanásia. A luta durou aproximadamente 30 anos e constitui uma busca não apenas pelo direito à sua morte, mas também pela dignidade da sua vida.
A trama do filme é condicionada por duas mulheres : Júlia (Belén Rueda) é uma advogada disposta a apoiá-lo em favor da eutanásia, motivada pela sua própria doença incurável e degenerativa e Rosa (não sei o nome da atriz), uma vizinha que insiste em convencer Ramón a desistir de sua luta pela morte. A personalidade marcante de Ramón acaba por cativar as duas mulheres e fazê-las questionar os princípios que regem as suas vidas, contrariando a intenção de Rosa de dissuadi-lo de seus objetivos. É ela, de resto, que no final auxilia Ramón a praticar a própria morte.
O filme Mar Adentro, que versa sobre a vida e a liberdade, coloca-nos duas questões: o direito à vida e o desejo de uma boa e serena morte, como todos desejamos para nós e para os nossos, sobretudo.
No filme são levantadas questões muito pertinentes sobre a qualidade de vida, sem a qual não haveria dignidade e por isso não valeria a pena viver; a questão da autonomia do homem e da sua suficiência e autodeterminação; a questão do sofrimento, meu e dos outros; o facto da irreversibilidade da doença transformar a pessoa num fardo para os que o rodeiam, etc, etc.
Há, até, um momento em que Ramón recebe a visita do padre, também tetraplégico, que tenta convencê-lo, utilizando argumentos religiosos, de que é desejável viver mesmo naquela condição. O diálogo entre as personagens possibilita uma reflexão sobre o papel e a influência dos valores religiosos na discussão dos dilemas morais relativos ao direito à vida. A religião aparece, no filme, como muitas vezes no espaço público, como responsável pela obstrução ao processo de legalização da eutanásia ao retirar do indivíduo a posse de sua vida e transferi-la para Deus.
Sem insistir no papel de spoiler, escusado será dizer que o filme termina com a realização do desejo de Ramón, efetivado com a ajuda de Rosa, como já disse. A família de Ramón sofre com sua partida. Julia não se lembra de quem foi Ramón, devido ao avanço de sua doença. Para nós fica o poema no final do filme, escrito pelo próprio: “Morrer é jogar uma única carta durante toda a nossa vida / É apostar tudo no desejo de encontrar uma estrela que nos dê um novo caminho”.
É este “novo” caminho que o parlamento se prepara para votar no dia 20 de fevereiro, sem conhecimento sequer, pasme-se, do parecer do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida sobre os vários projectos que a esquerda parlamentar se apressou a apresentar no inicio desta legislatura como se fosse o assunto mais premente da política nacional. Aliás, como se o futuro do país dependesse desta votação e deste assunto em concreto.
Evidentemente, que um assunto desta natureza necessita de leitura e reflexão amadurecida. Sobretudo, porque estamos efetivamente a querer legislar sobre o direito a viver e o direito a morrer. E já vamos na terceira tentativa sem que haja um debate público alargado sobre o assunto, com a mesma premência com que se agendam debates no parlamento. Dirão: a sociedade é que não se organiza. Pois! Mas se o Parlamento não respeita sequer os próprios interlocutores, como o Conselho Nacional de Ética … Bela Democracia participativa!
Os caminhos apressados que permitem escolhas condicionadas pela fragilidade não serão bons conselheiros. Julgo, uma vez mais, que a pressa dos nossos legisladores deveria ir para a definição de estratégias e disponibilização de meios- humanos e financeiros- para que nos hospitais, nos lares ou em casa, cada homem e cada mulher que se confrontar com a irreversibilidade de uma doença limite possa ser acompanhado com consciência, inteligência e coração. A medicina deve ter em consideração cada pessoa, na sua integridade espiritual e material, na sua dimensão individual e social e rejeitar armadilhas. O direito à dignidade na nossa morte é natural; só se torna artificial mercê de uma chamada conquista civilizacional que quer afrontar e provocar a limitação da vida e do viver, porque acha que a nossa perspetiva é para a imortalidade, muitas vezes não tendo a consciência de que não somos imortais. O poema no fim do filme Mar Adentro é isso que revela.
Como lembrava o Papa Francisco em setembro do ano passado: “Cabe aos médicos possuir, juntamente com a devida competência técnica e profissional, um código de valores e significados com os quais dar sentido à doença”, num respeito absoluto pela vida humana e pela sua sacralidade.
O resto é ideologia e agenda política.