Pelo Padre José Júlio Rocha
O olhar não tinha luz. Era assim como qualquer coisa meio apagada e escura, sem expressão nem coragem, sem desespero e com absolutamente nenhuma alegria. Bailando de um lado para o outro, sem encarar ninguém, aquele olhar já falava de morte, apesar da juventude do dono dos olhos. Há gente assim, que já traz a morte no olhar muito antes do tempo, já desde criança, e às vezes sabemos porquê. O resto do corpo pertencia àquele olhar. Ombros descaídos pelo peso de uns braços magros de adivinhar os ossos, mãos nas algibeiras de umas calças escuras, sujas, rotas em traços horizontais, uma t-shirt azul surrada de mais de semana sobre o corpo. Nariz agudo com uma espinha na ponta, uma tatuagem demasiado má a cair do pescoço para o peito, dentes já com uma tonalidade a cair para o castanho, voz rouca de menino que nunca foi criança. Corpo macerado pela heroína, “Além-Mar” aberto no bolso da t-shirt, “uma esmolinha para comprar um papo-seco com manteiga”.
O rapaz sem nome tinha saído da cadeia onde jazera três anos por motivo de vários assaltos para consumo de droga. Levava 27 anos em cima da pele curtida e falava mal, com um sotaque demasiado forte, palavras cortadas a meio, dormia pelos cantos, era apenas mais um daqueles mendigos que cirandam por Ponta Delgada, uns repatriados, outros nem por isso, atraídos pela cidade onde abundam turistas, “um euro, please”, sobretudo no Campo de São Francisco, por onde passam as almas mais religiosas e devotas do Senhor Santo Cristo. Um parasita inútil. Pior, dependente dos dinheiros públicos sem fazer nada. Pior, um homem perigoso.
É incómodo pensar no número expressivo de humanos que vivem às custas e às costas do Estado, com bons telemóveis e nenhum juízo, vivendo em casas razoáveis e pagando uma bagatela, enquanto um honesto trabalhador passa noites sem dormir para pagar a prestação.
Num país onde mais de um terço dos habitantes já tem seguro de saúde, mesmo descontando para o SNS e por causa da pouca eficácia dele, onde quem trabalha paga e quem não faz nada recebe, onde se protegem os marginais e se carregam de impostos os honestos, vem-nos à alma aquela frase-feita já aceite e com a sua lógica: “Tirar a quem trabalha para dar a quem não quer trabalhar é incentivar os dois a não fazer nada.”
E, no entanto, aquele rapaz sem nome, a definhar pelas ruas e a dormir em casas abandonadas, de olhos sem luz e espinha na ponta do nariz, dentes castanhos e mãos nos bolsos, a fugir da vida na ilusão drástica da heroína, inquieta-me sobremaneira. Venho a saber que nasceu numa dessas freguesias pobres viradas ao mar. O pai, que se embebedava todos os dias, ou lhe batia ou o desprezava, desde pequenino. A mãe prostituía-se na rua e não havia comida na mesa. Desde pequenino, o rapaz sem nome roubava os papos-secos que o padeiro dependurava nas portas dos vizinhos. Roubava roupa lavada dos fios e lá deixava a sua roupa suja. O rapaz sem nome é um “não amado”, a categoria humana mais baixa do ponto de vista social, humano e afetivo. Nunca conheceu o amor, a amizade, um beijo que fosse. Escorraçado do ventre materno, nunca mais teve lugar onde se pudesse sentir, pelo menos, vivo. Já os pais tiveram pais assim e esses avós devem ter tido pais semelhantes, até não se sabe onde. É a crónica da classe mais baixa, da pobreza endémica, do mais total abandono. Como se chega a isso e, principalmente, como se sai desse círculo vicioso?
Sem presente, com um passado execrável e um futuro cancelado, estes homens e mulheres sem nome arrastam a sua desgraça pelas nossas ruas, batem às nossas portas, incomodam-nos nos passeios, assaltam casas e ameaçam idosos, encafuam-se em pardieiros nojentos e sujam a nossa paisagem urbana. Talvez não os desprezemos, não os odiemos, não os tratemos mal, não os escorracemos, mas também não os amamos. Nunca foram amados e trazem ao peito uma tabuleta invisível a dizer “não amado”, como, na idade média, se usava “leproso”. Afastem-se todos, deem uma moeda para os afastar, comprem-lhes uma sandes e um galão, digam-lhes umas palavrinhas morais, mas nunca os amem. Não sabem o que é isso. Um dia irão morrer novos, esquecidos e nulos, com uma overdose, uma cirrose, um enfarte qualquer, a sida ou uma pneumonia que não chegou ao hospital. E passaram sem nunca existir. As dores deles não são nossas. Siga a carruagem que a vida é mesmo assim.
O problema é exatamente a nossa consciência de pessoas bem pensantes e razoavelmente em paz com a existência. Os sem nome incomodam-nos a vida, não a consciência, essa consciência que nos convida, sem sentimentos de culpa, a virar a cara para o outro lado.
Pobres na plenitude do termo.
Talvez um dia havemos de prestar contas por tudo aquilo que não fizemos.
*Este artigo foi publicado na edição desta sexta-feira do jornal Diário Insular, na rubrica Rua do Palácio