Por Carmo Rodeia
A poderosa imagem que na sexta-feira percorreu o mundo, com o Papa Francisco, sozinho, sobre uma calçada molhada pela chuva da esperança na Praça de São Pedro não deixa de martelar na minha cabeça. É uma imagem muito poderosa que fica de uma oração histórica pela humanidade inteira independentemente do credo, da condição, da origem ou da geografia.
Da cidade para o mundo, significado da expressão Urbi et Orbi, a bênção que habitualmente o Papa só concede quando é eleito, no Natal e na Páscoa, voltou a surpreender-nos.
As palavras, associadas à expressão do Papa, foram de uma beleza e de uma intensidade que só nos podem desassossegar.
O Papa Francisco voltou a calçar, como tantas vezes faz à boa maneira do Senhor Jesus, os sapatos do outro, de quem se faz sempre próximo, sobretudo quando o outro é o mais pobre, o mais frágil, o mais vulnerável… o menor de todos na cadeia das relações humanas e sociais.
“Estamos todos neste barco. Ninguém se salva sozinho”.
Falou dos médicos, dos enfermeiros, dos trabalhadores dos supermercados e das limpezas, das forças policiais, dos bombeiros, dos sacerdotes e religiosas e dos voluntários que todos os dias estão na luta para ajudar a população que enfrenta uma crise sem precedentes.
“Podemos ver tantos companheiros de viagem exemplares, que no medo reagiram oferecendo a própria vida. É a força operante do Espírito derramada e plasmada em entregas corajosas e generosas”, disse o Papa na cerimónia transmitida para todo o mundo, nestes tempos de provação.
Não me lembro de Sumo Pontífice dar a bênção Urbi et Orbi numa praça de São Pedro vazia de gente quando as imagens deste local sempre mostraram uma praça repleta de fiéis. Mas esta é a Igreja que sabe ler nos sinais dos tempos.
De há semanas a esta parte a “noite cai mais cedo e as trevas inundam as praças, as ruas e as cidades”, disse o Papa, referindo que se “apoderaram das nossas vidas, enchendo tudo dum silêncio ensurdecedor e de um vazio desolador, que paralisa tudo à sua passagem: pressente-se no ar, nota-se nos gestos, dizem-no os olhares. Revemo-nos temerosos e perdidos”.
O Santo Padre lembrou que, tal como os discípulos do Evangelho, “fomos surpreendidos por uma tempestade inesperada e furibunda”, em que todos estão “no mesmo barco, todos frágeis e desorientados mas ao mesmo tempo importantes e necessários: todos chamados a remar juntos, todos carecidos de mútuo encorajamento”. “E, neste barco, estamos todos”, destacou.
“Não podemos continuar estrada fora, cada qual por conta própria, só o conseguiremos juntos”.
“Os dias difíceis que o mundo está a atravessar mostram a nossa vulnerabilidade e deixam a descoberto as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades”, disse Francisco.
“Mostra-nos como deixamos adormecido e abandonado aquilo que nutre, sustenta e dá força à nossa vida e à nossa comunidade”, disse o Papa adiantando que “com a tempestade, caiu a maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso «eu» sempre preocupado com a própria imagem; e ficou a descoberto, uma vez mais, aquela (abençoada) pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos”.
Lamentou uma sociedade marcada pela “avidez de lucro”, que se deixa consumir pelos bens materiais e “transtornar pela pressa”.
“Não nos detivemos perante os teus apelos, não despertamos face a guerras e injustiças planetárias, não ouvimos o grito dos pobres e do nosso planeta gravemente enfermo. Avançamos, destemidos, pensando que continuaríamos sempre saudáveis num mundo doente. Agora nós, sentindo-nos em mar agitado, imploramos-Te: ‘Acorda, Senhor!'”, pediu o Santo Padre.
Além da mensagem política, social e até filosófica, o Papa deixou-nos o maior desafio de todos. Sobretudo, aos cristãos: que fé é a nossa, como a podemos concretizar, que lugar damos a Deus e aos outros na nossa vida.
“Jesus comoveu-Se, Perturbou-Se e chorou”, diz-nos o Evangelho deste domingo, também ele poderoso. Jesus fê-lo diante de Maria, como nos conta o evangelho de São João (Jo.11,35) no episódio da ressurreição de Lázaro e que remete para o momento em que ela, irmã de Lázaro e da sempre incansável Marta, os quatro de Betânia (que se significa casa dos pobres) se ajoelha aos pés de Jesus, numa postura tradicional do discípulo em relação ao Mestre e, chorosa, lamenta a morte do irmão e a ausência de Jesus. É neste encontro que Jesus revela a sua condição humana e chora a morte do amigo. Depois abeira-se do túmulo, onde jazia Lázaro e ordena-lhe que se levantasse, deixando para trás todas as ligaduras em que estava envolto, símbolo de tudo os que nos prende e nos mete meto.
Jesus comoveu-Se e chorou… naquele tempo, com aquela família e hoje com todas as famílias. As que sofrem e as que são felizes, porque as lágrimas não têm que ser só de dor ou de tristeza. Muitas coisas há, aliás, que só podem ser vistas com os olhos marejados de lágrimas. Como o amor que vence tudo. E o amor em relação. Foi isso que o Papa nos disse na sexta feira.
As lágrimas do Papa não se viram. Mas o seu coração estava lavado nelas e isso presenciámos todos. A expressão do Papa fez-me lembrar um outro convite, também do Evangelho: Vem e segue-me. Foi o grito a toda a humanidade para que se faça ao caminho, para que calcemos todos os sapatos uns dos outros e caminhemos juntos para vencer a pandemia.
Onde há amor há esperança, mas ninguém é feliz sozinho!