Pelo padre Teodoro Medeiros
Na epopeia “Ilíada”, atribuída a Homero, Zeus faz chegar a Agamémnon uma mensagem, revelando-lhe o plano que garantiria a conquista de Troia. Na realidade, Agamémnon “pensava que ia conquistar naquele dia a cidade de Príamo/iludido, não sabia que planos Zeus urdisse” (II, 37-38). Os especialistas veem aqui uma alusão subtil à natureza do próprio discurso épico, verdadeiro mas não isento de enganos.
Esta apresentação indireta, um aviso ao leitor, é prova da composição alegórica do poema, entendendo-se por alegoria a busca e a expressão das verdades escondidas. Basta partir daqui para reconhecer as garantias de Walter Benjamin sobre esta expressão literária: só a alegoria pode exprimir a história redimida e só ela inclui o presente do leitor na construção do significado de um texto. A alegoria é uma função básica da comunicação, como afirma o estudioso Andrew Laird.
De Kafka a Auster, o leitor moderno conhece bem este “dizer algo através de outro”. E, no entanto, devido aos abusos da Patrística, a teologia devota-lhe uma certa repulsa, contrariando o privilégio que lhe é atribuído nas parábolas evangélicas. No cinema, a linguagem é mais livre e é possível ler alegoricamente até fenómenos como “Guerra das Estrelas”. Esta saga de ficção científica, centrada na luta entre o bem e o mal, consegue até contornar o principal obstáculo deste meio: a presença do ridículo.
Num primeiro nível, a alegoria resvala muitas vezes no absurdo, o surreal: se Gregor Samsa inicia a “Metamorfose” transformado em inseto, é claro que não se trata de um livro normal. No caso de “Guerra das Estrelas”, a anormalidade dos sabres de luz e jedis com poderes míticos funciona de modo inverso, como atrativo para os adeptos do género. A regra não escrita em funcionamento é simples, contudo: quanto mais distanciada da realidade a alegoria for no seu primeiro nível, mais se potencia para exprimir o segundo.
“Boneca Insuflável”, do japonês Hirokazu Koreeda, é um exemplo admirável do que é o bom uso deste recurso no cinema. A premissa é tão simples quanto justamente absurda, a boneca do título ganha improvisamente consciência de si mesma e sai de casa, tentando compreender o que é estar viva. Estamos no reino dos contos de fadas, mas o que quererá a estória comunicar?
Nozomi abre pela primeira vez os olhos para o mundo e a sua inocência é a das crianças: não sabe o que é envelhecer, não sabe o que são as pessoas e tem uma predileção pelas flores que encontra no caminho. Tudo é novo para ela, mas chegará mesmo assim ao tempo das grandes perguntas. Ser-lhe-á dito que as bonecas são criadas todas iguais, mas que, no fim, é possível distinguir quais as que foram amadas; descobrirá que as pessoas não amam todas da mesma maneira (e que isso seria até muito perigoso).
Como se percebe, o segundo nível desta alegoria é um tratado sobre a humanidade, uma descrição do que é ser-se humano e de todos os enganos que daí vêm. Sublimes muitos momentos, como quando o seu amigo idoso lhe responde que há muitas mais pessoas assim, depois de ela lhe revelar que é vazia por dentro; ou quando o prazer maior que ela lhe pode oferecer é colocar-lhe a mão sobre a testa, como a uma criança. É aí que estão as sementes imortais de humanidade.
Dos que são como as crianças, diz o Evangelho, é o Reino dos Céus. O filme está disponível em dvd no nosso país.