Ontem já foi amanhã

As cidades não se medem apenas pelo número dos seus habitantes, nem pela dimensão das suas artérias e edifícios, nem pelas indústrias ou movimento dos automóveis.

Também se medem pela forma de andar das pessoas que estão nelas. É mais ou menos assim: em cidades pequenas anda-se mais devagar, em cidades maiores, mais depressa. Quanto maior a cidade, mais depressa se anda nela. Acho eu. Parece que a distância dos lugares, que é maior nas maiores cidades, ajuda as pessoas a andar mais depressa. Quem anda vagaroso numa cidade grande até parece que veio dos Açores. Ou de uma aldeia dessas que vão ficando cada vez mais longe de Lisboa.

Foi em Lisboa, há dias, que eu assisti a um homem cheio de pressa, a ultrapassar-me pela direita, no passeio, alheio ao mundo e à cidade, olhos no chão, mãos nos bolsos, pernas para que vos quero. Nas cidades grandes, quase sempre se olha para o chão, como se o chão fosse o lugar mais bonito de uma cidade grande. Ou então, em alternativa, fala-se ao telemóvel e olha-se para todos os lugares, o que quer dizer exactamente para lugar nenhum. Alguns minutos depois, o homem apressado estava parado numa fila mais ou menos enorme, que entrava por uma estranha porta adentro.

Nas grandes cidades, ou se anda depressa ou se está parado. É como se o momento presente não fosse. Apenas existisse passado e futuro. Corre-se para chegar mais depressa ao momento seguinte. Depois, talvez porque se anda depressa demais, fica-se parado, na angústia de esperar: porque, pior que correr para o momento seguinte, é esperar que o momento seguinte venha, devagar, ter connosco. Nos semáforos, nas grandes filas de repartições, nas senhas das farmácias ou nessa coisa a que chamamos vida.

Parece que viver é despachar coisas. Arrepiar caminho para desempeçar o amanhã e, à medida que o amanhã chega, vem carregado de depois de amanhã. E o Agora é uma espécie de subdivisão de segundo. Não temos tempo.

Nas grandes cidades bonitas há também esses movimentos estranhos de pessoas que se chamam turistas e que andam em bandos, perseguindo um guia de bandeira em riste. Esses andam mais devagar, mas também transportam a pressa por dentro. De repente o guia pára diante de um monumento magnífico e convida a olhar para ele: ninguém olha para o monumento. Todos põem uma máquina fotográfica ou um telemóvel entre os olhos e o monumento magnífico. E enquanto o guia conta histórias maravilhosas, os turistas carregam pela décima vez em dez segundos num botão e passam adiante. Na ânsia de guardarem o momento para um futuro, não gozaram o momento de verem, com os próprios olhos e a emoção da alma, o magnífico monumento e metade das histórias maravilhosas ficaram para trás. E o futuro é guardar milhares de fotografias, não se sabe bem de quê.

E assim, sem presente que se preze, com um passado que serve apenas para as fotografias, as grandes cidades crescem a “pensar no futuro”, expressão que fica bonita num cartaz de propaganda política, mas que, no fundo, é a aceitação de que não se sabe viver.

É como quem faz zapping: passa-se de canal em canal, com o telecomando cada vez mais nervoso, à procura – muito rapidamente – daquele canal que nunca aparece. Quando tínhamos só um canal de televisão, quase todos os programas eram bons. Hoje, quase nenhum canal presta. Foi isto que a pressa fez da vida.

 

Pe Júlio Rocha

Scroll to Top