OH, New York, New York!

Pelo Pe. José Júlio Rocha

No dia 11 de fevereiro chega-se aos 12 anos do último referendo sobre o aborto em Portugal, em que quase 60% dos votantes disseram sim à pergunta: “Concorda com a despenalização da interrupção voluntária da gravidez, se realizada, por opção da mulher, nas 10 primeiras semanas, em estabelecimento de saúde legalmente autorizado?” Desde aí até cá, com todos esses anos passados, pouco mais se falou do assunto, considerado resolvido, pelo menos até não aparecerem as iniciativas para o prazo de dez semanas ser alargado a 12, 15 ou mais.

Há precisamente dois anos, Fernanda Câncio escrevia, no Diário de Notícias, um artigo intitulado “A grande derrota da Igreja Católica”. No artigo, ela considerava a condenação do aborto livre uma “iniquidade”, um “desrespeito pela vida e pela dignidade das mulheres”, que tinha dois motivos: o machismo atávico e o receio dessa entidade chamada Igreja Católica. Chegou à conclusão de que o poder da Igreja Católica era um mito, que os portugueses se diziam católicos mas não ligavam peva ao que os padres diziam, e que a vitória do sim ditou “o fim do poder da sacristia e dos seus ditados preconceituosos, cruéis e – diga-se – tão anticristãos. Foi início de uma nova era de respeito pelas pessoas.”

O artigo, diga-se, é bastante ressabiado e panfletário. Esquece que o Não ganhou no referendo de 1998 porque o Sim pôs a tónica do discurso nos direitos da mulher e no slogan “a barriga é minha”; pelo contrário, o Sim ganhou em 2007 porque a tónica foi posta no flagelo social que era o aborto, na hipocrisia de fechar os olhos ao aborto clandestino ou aos abortos na Espanha, que chegava, dizia-se, a mais de 15 mil por ano, levando a gravíssimos problemas de saúde pública e de perigo para a vida das mulheres.

Não vejo nisso uma grande derrota da Igreja. O que preocupa a Igreja é o facto de os discursos esquecerem reiteradamente a realidade do embrião ou do feto, que, independentemente de serem ou não pessoas são, com todas as evidências, vidas humanas. Diz a lenda que o matemático, físico e filósofo italiano Galileu Galilei murmurou esta frase depois de ter sido obrigado a renegar em 1633, diante da Inquisição, sua tese de que a Terra se move em torno do Sol: “Eppur si muove” (e, no entanto, move-se). Contra evidências, não há argumentos. O embrião move-se, ali, na barriga da mãe, continua a mover-se nas nossas consciências que queremos, por força, domar em nome de um pressuposto progresso social.

Ao que parece, com o referendo ficou tudo resolvido. Mas sabemos que continua a haver abortos de vão de escada – o Sim não resolveu tudo – e que o aborto se tornou, em muitos casos, um método contracetivo. Quem sabe se não era hora para um debate sereno sobre o assunto?

Falo agora disto não só por causa da data mas sobretudo porque foi promulgada, no Estado de Nova Iorque, a Lei da Saúde Reprodutiva, que elimina o aborto, durante os nove meses da gravidez, do quadro penal do Estado. A lei observa que “Todo o indivíduo tem o direito fundamental de escolher ou recusar contraceção ou esterilização. Todo o indivíduo que engravida tem o direito fundamental de escolher levar a gravidez até ao termo, dar à luz uma criança ou fazer um aborto”. Os promotores da lei defendem: “Estamos a dizer que aqui em Nova Iorque, a saúde das mulheres é importante. Estamos a dizer que aqui em Nova Iorque, a vida das mulheres é importante. Estamos a dizer aqui em Nova Iorque que as decisões femininas são importantes”.

Isto até aos nove meses. Até ao dia antes do parto.

É exatamente isto que eu não compreendo, por mais esforço que a minha mente e a minha consciência façam. Daqui para a frente, em Nova Iorque, abortar uma criança um dia antes de nascer é um ato médico, matar uma criança um dia depois de nascer pode dar prisão perpétua. Dizer que isso é um progresso civilizacional, uma vitória da dignidade da mulher parece-me um absurdo, e eu não me considero machista. A crença cega no progresso a todo o custo faz-me sempre lembrar a queda do Império Romano, afogado em pão e circo e que atirava os bebés indesejados pela Rocha Tarpeia abaixo. “Eppur si muove” é o grito silencioso que o mundo do progresso não gosta de ouvir.

O aborto foi a maior causa de mortes no mundo todo em 2018, com 42 milhões de abortos. Há quem não queira incluir esse número na lista de causas de morte. Morrem os animais, morrem as plantas, morrem as células… os embriões e os fetos não morrem… são interrompidos. O politicamente correto é, às vezes, uma treta. É o caso.

Não. Não esqueço os dramas das mulheres, as escolhas difíceis, o insuportável peso da solidão dos momentos críticos. Mas também não esqueço que em Nova Iorque se desprezaram cobardemente os direitos da vida humana por nascer.

Nova Iorque não deu um passo em frente. E, se o deu, foi na direção de um abismo. Este é mais um sintoma grave da radicalização social. De uma civilização em crepúsculo. Varre-se para debaixo do tapete a ineludível questão da vida humana por nascer. Eppur si muove.

 

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